Texto 1
A Organização Internacional para as Migrações (OIM), Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para as migrações, lançou o Relatório Mundial sobre Migração de 2024, o qual revela que, ainda que a migração internacional continue a impulsionar o desenvolvimento humano, os desafios persistem. A migração é comumente ofuscada por narrativas sensacionalistas. Entretanto, a realidade tem muito mais nuances que as manchetes não conseguem capturar. A maior parte da migração é regular, segura e com foco regional, diretamente vinculada a oportunidades e meios de subsistência. Mesmo assim, a desinformação e a politização do tema contagiaram o discurso público.
(“Relatório Mundial sobre Migração de 2024 revela as últimas tendências e
desafios mundiais para a mobilidade humana”.
https://brazil.iom.int, 07.05.2024. Adaptado.)
Texto 2
Subindo um aclive em Montmartre, na direção da antiga igreja de Sacré-Coeur em Paris, era possível ouvir conversas em voz baixa entre os empregados que tratavam de fechar o comércio e tomar o rumo de casa. De passo apertado para fugir do frio, eu conseguia vislumbrar os rostos jovens dos funcionários da quitanda que se despediam em árabe. Eram meninos de sobrancelhas grossas e barbas bem desenhadas. Eu sabia: aqueles garotos eram sírios. Na quadra seguinte, um grupo de homens altos e esguios passou por mim. Tinham a pele negra e os dentes brancos. Falavam francês, mas vinham do Mali, pensei. Na estação Pigalle, ao descer a escada do metrô, tive de esperar que uma senhora boliviana se entendesse com o sistema eletrônico que emite as passagens. Dentro do vagão me perdia em pensamentos sobre a origem e o destino das pessoas daquele trem.
“Tem que mandar embora esses imigrantes”, alguém estava falando em voz alta no metrô. Demorei a entender que era justamente o homem sentado à minha frente quem falava assim. O discurso violento continuou por algumas estações. A cada vez que o vagão mergulhava no túnel escuro, eu via meu próprio rosto refletido no vidro da janela. Pele clara, cabelo crespo, nariz grande. Eu não sentia que a agressividade daquele homem era dirigida a mim. Mas poderia ser. Sou brasileiro, afinal. Estrangeiro, como os demais. Na minha imaginação, eu me acomodava ao lado dele e dizia: “Monsieur, meu nome é Charleaux. É um nome francês, não é? Pois bem, eu não sei de onde ele veio. Mas o fato é que, em algum momento, algum francês saiu daqui e se meteu no Saco da Ribeira”.
Eu, brasileiro, voltava em 2018 a uma França de onde, um dia, haviam partido parentes distantes em direção ao Brasil. Por isso me soava ainda mais absurda a agressão que aquele cidadão grosseiro dirigia aos imigrantes. A história da humanidade é de viagens, migrações, choques, encontros e desencontros. Como alguém pode se opor tão violentamente contra isso?
(João Paulo Charleaux. “‘Ser estrangeiro’: história e conceitos da migração”.
www.nexojornal.com.br, 02.09.2022. Adaptado.)
Texto 3
Texto 4
A Austrália atrai brasileiros que buscam por oportunidades de viver no exterior. O país precisa de mão de obra de trabalhadores estrangeiros e por isso facilita a entrada de imigrantes em seu território. De acordo com o governo australiano, brasileiros formam o maior grupo de imigrantes da América Latina para a Austrália. Os mais recentes dados do Censo 2021 apontam que existem cerca de 46,7 mil brasileiros morando por lá. Desses, 20 mil são estudantes.
Os dados da ONU mostram que o país tem um dos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) mais altos do mundo. A combinação de qualidade de vida e oportunidades são algumas das razões que motivaram a administradora Thainan Brito, 30, a mudar-se de São Paulo para Sydney. A sensação de segurança e o poder de compra também são apontados por ela. Thainan destaca a eficiência do transporte público como uma notável vantagem em relação a São Paulo. Ela afirma que os trens estão sempre vazios, além de serem rigorosamente pontuais.
Embora os salários sejam bons, a principal diferença em comparação com o Brasil está no poder de compra. Apesar dos altos custos com aluguel, alimentação e outros itens essenciais, o que sobra pode proporcionar um padrão de vida superior. Com o que resta, é possível fazer compras e adquirir produtos de qualidade, algo que pode ser mais restrito no Brasil. Thainan diz que conseguiu comprar um carro: “Apesar de trabalhar muito, nunca tive carro no Brasil, e aqui, com quatro meses, comprei um. Isso foi um grande marco para mim.”
(Amanda Fuzita. “Morar e trabalhar na Austrália: Dicas, salários, custo de
vida e histórias de brasileiros”. www.estadao.com.br, 07.08.2024.)
Com base nos textos apresentados e em seus próprios conhecimentos, escreva um texto dissertativo-argumentativo, empregando a norma-padrão da língua portuguesa, sobre o tema:
Ser imigrante: entre desafios e oportunidades
Análise da proposta
A proposta de redação da Unifesp deste ano solicita aos candidatos uma dissertação em prosa sobre o tema “Ser imigrante: entre desafios e oportunidades”. A temática, de cunho social, convida os estudantes a refletirem sobre a histórica questão da imigração e a permanência dos discursos de ódio associados a ela. O tema é relevante e atual, o que corresponde à tradição da banca examinadora.
A coletânea é bastante factual e apresenta três textos dissertativos de diferentes autores e um quadrinho.
O texto 1 apresenta o Relatório Mundial sobre Migração de 2024, o qual revela que, apesar de impulsionar o desenvolvimento, a migração enfrenta desafios devido à desinformação e à politização, embora seja geralmente segura e apresente oportunidades de subsistência.
No texto 2, “‘Ser estrangeiro’: história e conceitos da migração”, João Paulo Charleaux relata suas percepções sobre os imigrantes sírios, malineses e bolivianos durante o seu trajeto em Montmartre, Paris. No metrô, o autor testemunha um discurso agressivo contra os estrangeiros, proferido por um nativo: “Tem que mandar embora esses imigrantes”. Tal agressividade fez com que o escritor refletisse sobre sua própria condição de imigrante e questionasse como pode haver tanta intolerância, mesmo com a história da humanidade sendo marcada por migrações e encontros culturais. O candidato poderia se lembrar de casos históricos para complementar sua análise sobre os deslocamentos.
O texto 3 é uma tirinha feita por Alexandre Beck para questionar o papel dos imigrantes na cultura. Pudim pergunta a Armandinho se o grupo é um problema, e o garoto pede auxílio a um indígena. O aluno mais atento poderia identificar que a condição de imigração depende muito de quem está sendo analisado.
Por fim, no texto 4, “Morar e trabalhar na Austrália: dicas, salários, custo de vida e histórias de brasileiros”, Amanda Fuzita mostra a realidade da Austrália, local que atrai brasileiros devido às oportunidades de trabalho e à qualidade de vida. O país facilita a entrada de imigrantes por precisar de mão de obra estrangeira. Segundo o Censo de 2021, cerca de 46,7 mil brasileiros vivem na Austrália, sendo 20 mil estudantes. Com alto IDH, o país oferece segurança, transporte eficiente e maior poder de compra. O aluno poderia usar o excerto para compor argumentos sobre as oportunidades de deslocamento para países com economia e qualidade de vida superiores, por exemplo.
Encaminhamentos possíveis
Formalmente, o tema segue a tradição da Vunesp de apresentar um assunto amplo (“ser imigrante”) e duas palavras-chave como recortes temáticos: desafios e oportunidades. Por um lado, cabe comentar que não se trata de recortes polêmicos, como muitas vezes é o caso em propostas desse modelo. Por isso, o importante é elaborar uma tese clara (posicionar-se sobre a questão), desenvolvendo de alguma forma tanto os desafios que imigrantes enfrentam, quanto as oportunidades econômicas e culturais associadas ao fenômeno e muitas vezes esquecidas. É preciso especial atenção para não se desenvolverem abordagens excessivamente factuais e expositivas. Ao contrário disso, torna-se fundamental a apresentação e a sustentação de um juízo crítico sobre o assunto.
Nessa linha, era possível desenvolver, entre outros, os seguintes encaminhamentos:
- A migração internacional, como apontado no Texto 1, é frequentemente distorcida por narrativas sensacionalistas que fomentam preconceitos e obscurecem a realidade de que a maior parte das migrações é segura e regular. A desinformação cria uma base para a intolerância, sustentada por discursos que desumanizam os migrantes. Esse fenômeno pode ser relacionado ao conceito de banalidade do mal, de Hannah Arendt, que explica como ações e discursos preconceituosos se tornam rotineiros quando não há reflexão e questionamento crítico;
- Movimentos nacionalistas contrários à imigração têm se fortalecido globalmente, impulsionados por crises econômicas e insegurança. Exemplos notáveis incluem o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), com discursos antirrefugiados, e as políticas restritivas de imigração nos Estados Unidos do governo Trump, bem como a sua nova proposta de deportação em massa. Na França, Marine Le Pen defende medidas que priorizam cidadãos franceses em detrimento de imigrantes. Essas iniciativas refletem o impacto da politização da migração, reforçando exclusões em vez de buscar soluções integradoras.
- Migrar não implica apenas deslocamento físico, mas também lidar com barreiras emocionais, como o sentimento de exclusão e o isolamento cultural, como sugerido no Texto 3. Muitos imigrantes enfrentam preconceitos sutis ou diretos, que dificultam sua integração. Uma citação possível é a telenovela "Órfãos da Terra" (2019), em que as histórias de refugiados sírios expõem esses desafios emocionais, como o trauma de deixar o lar e as dificuldades de adaptação.
- O Texto 4 ilustra como a migração pode ser uma via de ascensão social, oferecendo melhores condições de vida e trabalho. O exemplo de brasileiros na Austrália demonstra que, apesar de desafios como o custo de vida, o retorno pode ser significativo, especialmente em termos de qualidade de vida. A sociologia de Pierre Bourdieu sobre os capitais cultural, econômico e social pode enriquecer o debate, mostrando como essas oportunidades são desiguais entre migrantes.
- A narrativa do Texto 2 ressalta a riqueza cultural proporcionada pela coexistência de diferentes origens e histórias. A interação entre imigrantes e comunidades locais, apesar de desafiadora, resulta em trocas que ampliam perspectivas e geram inovação cultural. O conceito sociológico de multiculturalismo reforça que a aceitação da diversidade é fundamental para sociedades mais justas e igualitárias.