Texto 1:
“Rubião, de cabeça, subscreveu logo uma quantia grossa, para obrigar os que viessem depois. Era tudo verdade. Era também verdade que a comissão ia pôr em evidência a pessoa de Sofia, e dar-lhe um empurrão para cima. As senhoras escolhidas não eram da roda da nossa dama, e só uma a cumprimentava; mas, por intermédio de certa viúva, que brilhara entre 1840 e 1850, e conservava do seu tempo as saudades e o apuro, conseguira que todas entrassem naquela obra de caridade”.
Machado de Assis. Quincas Borba. Capítulo XCII.
Texto 2:
As associações de indivíduos da mesma espécie constituem inumeráveis sociedades. Assim como as relações sociais, a vida é constituída por simbioses – associações duráveis e reciprocamente proveitosas entre seres de espécies diferentes.
Edgar Morin. Fraternidade. Para resistir à crueldade do mundo. Adaptado.
Texto 3:
“Já estávamos em Uidá havia quase duas semanas quando comecei a perceber como o Akin era esperto e inteligente. Ele conhecia quase todos os donos das lojas, pois de vez em quando fazia alguns trabalhos para eles, como limpar o chão, levar recados ou entregar encomendas. Foi dele a ideia de andar comigo e com a Taiwo pelas lojas e pedir presentes em nome dos Ibêjis [assim são chamados os gêmeos entre os povos iorubás], qualquer coisa, desde que não fizesse falta (...). Quando voltamos para casa, foi porque não conseguíamos mais carregar todos os presentes que ganhamos, e a minha avó novamente ficou brava, mas, no fundo, acho que gostou. A Titilayo riu e disse que éramos mais espertos do que ela imaginava, mas que não devíamos fazer aquilo novamente porque os tempos estavam difíceis e as pessoas poderiam não ter o que dar. Como ninguém gostava de recusar presentes aos Ibêjis, acabavam gastando o que não podiam ou se desfazendo do que precisavam, sem contar que ainda tinham que economizar dinheiro para quando começasse a época das chuvas, em que quase não havia movimento no mercado, nem o que vender ou colher, e faltava trabalho para muita gente. Os rios e lagoas transbordavam, engolindo as terras e os caminhos e dificultando os negócios. O Akin disse que então só pediríamos nas casas dos ricos, dos comerciantes que vendiam gente e moravam do outro lado da cidade. O Ayodele, que tinha voltado dos campos de algodão, avisou que não era para irmos lá de jeito nenhum, pois eles nos colocariam dentro de um navio e nos mandariam como carneiros para o estrangeiro”.
Ana Maria Gonçalves. Um defeito de cor.
Texto 4:
O mundo produz alimentos mais do que suficientes para erradicar a fome. Coletivamente, não nos faltam conhecimentos nem recursos para combater a pobreza e derrotar a fome. O que precisamos é de vontade política para criar as condições para expandir o acesso a alimentos. À luz disso, lançamos a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza e saudamos sua abordagem inovadora para mobilizar financiamento e compartilhamento de conhecimento, a fim de apoiar a implementação de programas de larga escala e baseados em evidências, liderados e de propriedade dos países, com o objetivo de reduzir a fome e a pobreza em todo o mundo. Nós convidamos todos os países, organizações internacionais, bancos multilaterais de desenvolvimento, centros de conhecimento e instituições filantrópicas a aderir à Aliança para que possamos acelerar os esforços para erradicar a fome e a pobreza, reduzindo as desigualdades e contribuindo para revitalizar as parcerias globais para o desenvolvimento sustentável.
Declaração de Líderes do G20. Rio de Janeiro, 2024. Brasil. Adaptado.
Texto 5:
“Mas se você achar
Que eu tô derrotado
Saiba que ainda estão rolando os dados
Porque o tempo, o tempo não para
Dias sim, dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
Da caridade de quem me detesta”.
Cazuza. O tempo não para.
Texto 6:
“Porque – guarde isto! – porque o homem, por mais ignorante que seja, por mais cego, por mais bruto, gosta de ser tratado como gente."
Ruth Guimarães. Água funda.
Considerando as ideias apresentadas nos textos e outras informações que julgar pertinentes, redija uma dissertação, na qual você exponha seu ponto de vista sobre o tema: As relações sociais por meio da solidariedade.
Instruções:
• A dissertação deve ser redigida de acordo com a norma padrão da língua portuguesa.
• Escreva com letra legível e não ultrapasse a quantidade de linhas disponíveis na folha de redação.
A proposta de redação da Fuvest 2025 solicitou a elaboração de um texto dissertativo-argumentativo sobre o tema As relações sociais por meio da solidariedade. No que tange ao assunto proposto, a banca seguiu a tradição de trazer uma questão relevante para a compreensão de certas dinâmicas sociais da contemporaneidade, a partir de um recorte temático que possui um caráter simultaneamente social e abstrato, em contraste com a edição de 2024.
Para a elaboração da redação, faz-se necessária a apropriação das reflexões trazidas pela coletânea, composta por textos de diferentes tipos: trechos de obras literárias, versos de música popular e excertos com abordagem filosófica, além de imagem que reproduzia uma obra de arte. Dessa forma, era esperado que o candidato, com base em uma leitura atenta e inferencial, refletisse a respeito das relações humanas atuais e como os atos de solidariedade se fazem presentes nessas dinâmicas.
A proposta contava com seis textos de apoio. O primeiro, um trecho retirado de Quincas Borba, de Machado de Assis, descrevia uma cena em que Rubião faz uma doação significativa para incentivar outros a fazerem o mesmo, enquanto Sofia usa a caridade para elevar seu status social. Ela se conecta com um grupo de senhoras distintas por meio de uma viúva influente, mostrando como a caridade também serve como um meio de ascensão social e estabelecimento de conexões influentes; aqui, é possível pensar como certos atos de solidariedade não são genuínos, mas movidos por algum tipo de interesse e reconhecimento social.
Já o segundo texto, que traz uma fala do sociólogo Edgar Morin, sugere que tanto as relações sociais quanto a vida, em geral, são construídas a partir de parcerias mutuamente benéficas, ou seja, assim como diferentes espécies colaboram em simbioses, indivíduos, em uma sociedade, unem-se, formando redes de cooperação e solidariedade naturais, essenciais ao bem-estar coletivo e individual.
No terceiro excerto, o candidato tem contato com a obra de arte Ibeji, de Yhuri Cruz, que ilustra uma passagem da obra “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves. No excerto, o narrador descreve como o personagem Akin consegue fazer conexões em Uidá, ao realizar pequenos serviços para os comerciantes locais, os quais, como recompensa, presenteiam-no com muitos presentes. Embora tenha coletado muitas prendas, foram alertados por Titilayo sobre as dificuldades econômicas que poderiam tornar essas dádivas um peso para os doadores. Akin sugere que peçam apenas aos ricos, mas Ayodele os adverte sobre os perigos de serem traficados. Esse trecho ilustra as relações sociais permeadas pela solidariedade genuína ao destacar pessoas que, embora pertencentes a uma situação de maior vulnerabilidade socioeconômica, colocam em prática ações genuínas de generosidade e solidariedade.
O Texto 4, um trecho da Declaração de líderes do G20, aborda a ideia de que o mundo possui recursos suficientes para eliminar a fome, mas que é necessária uma colaboração global para expandir o acesso aos alimentos. Aqui, a relação com a solidariedade é evidente na proposta de formar uma Aliança Global contra a fome e a pobreza, ou seja, a partir de uma ação coletiva internacional, enfatizando a importância da colaboração e do apoio mútuo para enfrentar desafios significativos.
O Texto 5, um trecho de uma famosa canção de Cazuza, traz a reflexão acerca de uma resistência resiliente diante das adversidades, já que o eu-lírico afirma que, apesar das dificuldades, consegue adaptar-se e sobreviver ao fluxo contínuo do tempo e ao tratamento hostil que recebe da sociedade.
Por fim, o Texto 6, retirado da obra “Água Funda”, de Ruth Guimarães, destaca a necessidade fundamental de dignidade e respeito que todos os seres humanos possuem, o que pode ressaltar a importância da solidariedade permeando as relações sociais para a garantia da humanidade na sociedade.
Encaminhamentos possíveis
Seja pela abrangência dos textos que integram a coletânea, seja pela abertura de análise que a frase-tema promove (As relações sociais por meio da solidariedade), é preciso destacar que o candidato tinha diante de si diversificadas possibilidades de encaminhamentos de sua reflexão. Portanto, o primeiro desafio para a escrita da redação é uma delimitação mais consciente e precisa do ponto de vista, dos aspectos que serão abordados no desenvolvimento do texto. A fim de produzir um texto dissertativo com direcionalidade e reflexões bem demarcadas, os seguintes pontos de vista poderiam ser considerados, entre outros:
- as relações sociais são (sempre ou em grande parte) mediadas pela solidariedade, fraternidade, caridade;
- as relações sociais não são majoritariamente mediadas pela solidariedade, mas pelo individualismo e pelo consumismo;
- as relações sociais são marcadas pela solidariedade em momentos específicos, como os de crises humanitárias, em que a comoção social incita a fraternidade;
- as relações sociais são mediadas por atos de solidariedade geralmente não genuína, resultados de interesses de promoção pessoal.
Nesse sentido, entre outros, poderiam ser desenvolvidos os seguintes encaminhamentos:
- Para o desenvolvimento do tema, poderia ser mobilizada a diferenciação entre solidariedade mecânica e orgânica, de acordo com o pensamento do sociólogo Émile Durkheim. A primeira, típica de sociedades tradicionais, baseia-se na semelhança entre indivíduos, enquanto a segunda, na interdependência. A abordagem do autor mostra que a solidariedade pode variar em relação às mudanças históricas.
- Características dos padrões contemporâneos de relações sociais também poderiam ser mobilizadas. O sociólogo Zygmunt Bauman, por exemplo, ao tratar da modernidade líquida, enfatiza que, hoje, as relações virtuais são mais passageiras e superficiais, o que dificultaria o estabelecimento de relações solidárias genuínas.
- É válido constatar que há solidariedade, apesar do individualismo marcante das sociedades capitalistas. Há exemplos de ajuda humanitária em tragédias ambientais de amplo alcance social, como as enchentes do RS, e mesmo outras de alcance mais local, como a organização de “vaquinhas virtuais”, destinadas aos mais variados fins, como a compra de fraldas para o recém-nascido de um colega de trabalho.
- O pensamento sociológico brasileiro também contribui para a reflexão sobre a solidariedade. O conceito de homem cordial, de Sérgio Buarque de Holanda, aponta para o caráter mais pessoal e afetivo da solidariedade no Brasil, bem como para uma dificuldade de haver uma solidariedade universal, independente de sentimentos e interesses pessoais.
- No mundo contemporâneo, não se pode falar em solidariedade sem mencionar o papel dos meios de comunicação de massa (tradicionais e digitais) na construção do sentimento de fraternidade, de altruísmo. A veiculação de campanhas de conscientização, de doação, de reportagens e novelas que abordam a solidariedade exploram a emotividade dos espectadores, sensibilizando-os para a ação. Campanhas tradicionais televisivas como o Criança Esperança ou Teleton e movimentos digitais de doações exemplificam o poder de atuação da mídia em relação à solidariedade.
- É possível explicar a falta de solidariedade no mundo contemporâneo a partir de elementos do sistema econômico vigente. A lógica neoliberal, ao estimular o individualismo e a competição, prejudicam a tendência humana à solidariedade. O conceito de alienação, de Karl Marx, propõe que, no capitalismo, os trabalhadores são alienados de sua própria humanidade, na qual se inclui a solidariedade. Já o sociólogo Byung-Chul Han, ao tratar do conceito de sociedade do cansaço, propõe que a cultura do desempenho e da competição minam as condições para relações solidárias.
- Na linha da análise da realidade econômica e cultural, diversas obras fictícias também trazem reflexões sobre o tema. A série Round 6, por exemplo, ao retratar uma espécie de reality show que leva as pessoas à morte em busca de um prêmio, serve de alegoria para o hiperindividualismo e a falta de solidariedade - resultado de uma competição exacerbada e do desespero. Já a produção brasileira 3% retrata um futuro distópico em que ocorre uma processo seletivo cruel para definir quem merece viver em abundância. Nesse contexto, prejudica-se a possibilidade de construção de relações solidárias.
- A ideia de uma realidade econômica que age contra a solidariedade também dialoga com o caso recente do assassinato do presidente da UnitedHealth, uma importante seguradora de saúde que tem sido criticada por provocar sofrimento e mortes devido à busca desenfreada por rentabilidade. A reação da população, de certa forma solidária ao atirador, tem sido vista como evidência de uma reação cultural contra o excesso de individualismo nas relações sociais e econômicas.
- Fenômenos atuais, como a emergência de novas formas de nacionalismo (e protecionismo) e de rejeição a imigrantes (como na Europa e nos EUA) refletem, de certa forma, uma tendência a haver menos solidariedade entre os povos.