A artista plástica moçambicana Bertina Lopes (1924-2012) foi a ilustradora da 1ª edição do livro Nós matamos o cão tinhoso!, de Luís Bernardo Honwana, publicada em Moçambique em 1964. Assim como Honwana, Bertina participou da luta anticolonial dos moçambicanos contra os portugueses, e suas obras mesclam influências dos movimentos da vanguarda artística europeia do início do século XX com a iconografia africana e os acontecimentos políticos da época.
Com base na imagem e na leitura do livro Nós matamos o cão tinhoso!,
a) exemplifique, a partir de dois contos da antologia Nós matamos o cão tinhoso!, a perspectiva assumida por essa obra sobre a luta dos moçambicanos contra o domínio colonial português.
b) aponte um aspecto da obra que se relacione com características da imagem. Justifique a sua resposta.
a) Os contos de Nós matamos o Cão Tinhoso! têm, como temática geral, justamente a luta dos moçambicanos contra o domínio colonial português. Nesse sentido, todos os contos abordam o assunto, de diferentes maneiras. Assim, temos:
- “Nós matamos o Cão Tinhoso!”: embora os meninos do conto sigam as orientações dos colonos e administradores, que decidem a morte do cão tinhoso, a trajetória do protagonista indica o início de uma tomada de consciência no sentido da empatia e da proteção ao animal, o que se associa a uma postura contrária à orientação daqueles colonos, bem como uma oposição àqueles moradores do país que não se identificavam diretamente com a terra.
- “Inventário de imóveis e jacentes”: na descrição dos cômodos e dos móveis da casa do narrador, há indícios que permitem perceber que seu pai era um homem intelectualizado, cujo conhecimento havia provocado sua prisão, fazendo com que livros mais comprometedores ficassem discretamente colocados em uma estante coberta por uma cortina. Essa condição intelectual permite ver nele um opositor do regime colonialista.
- “Dina”: a atitude opressora e violenta do capataz (representante do poder colonial) encontra uma oposição mais firme por parte de um trabalhador jovem, que é duramente punido por sua postura. O protagonista, Madala, mantém um comportamento mais contido, o que se justifica por sua condição de homem velho e experiente, que não vê ainda a possibilidade de uma revolta efetiva contra aquele poder.
- “A velhota”: um jovem é surrado por colonos em um bar, e sua reação é impedida, não apenas por sua impotência, mas pelo temor de que essa reação pudesse trazer algumas consequências para seus familiares.
- “Papá, cobra e eu”: o ataque de uma cobra ao cão de um colono português figura a reação que os moçambicanos gostariam de ter naquele momento. Essa postura é evidenciada no diálogo mantido entre pai e filho, moradores da casa onde ocorreu o ataque, que, embora mantenham uma postura pública de lamento diante do ocorrido, não conseguem esconder um do outro a satisfação que sentem.
- “As mãos dos pretos”: um garoto procura solucionar uma questão que o perturba: por que as palmas das mãos dos pretos são mais claras que o resto do corpo? As respostas que encontra, vindas de representantes da sociedade colonial branca, são as mais absurdas e preconceituosas. O fato de ele não se satisfazer com elas, bem como o de escolher a resposta dada pela mãe, que afirma a igualdade entre os homens, daí as palmas das mãos de todos terem a mesma tonalidade, mostra um questionamento do saber dos colonos, supostamente mais civilizados.
- “Nhinguitimo”: a derrota de um jovem, na luta em defesa de suas terras, roubadas por colonos portugueses, leva-o a atos de desespero. A história é testemunhada por um narrador que, diante do que assiste, toma consciência de que é preciso fazer alguma coisa para modificar a situação de exploração em que viviam os moçambicanos.
- “Rosita, até morrer”: o conto final (acrescentado na edição brasileira da obra) traz um embate entre o apego às raízes populares, representado pela enunciadora, e o desprezo por elas, encarnado na figura do rapaz a quem ela dirige sua carta. Assim, essa narrativa epistolar reafirma a necessidade de preservação cultural como fator essencial para a concretização de um projeto de libertação do domínio colonial.
b) A ilustração de Bertina Lopes associa-se ao livro de diversas formas: o fundo negro expressa a atmosfera de opressão do povo moçambicano (como se vê em “Nós matamos o Cão Tinhoso!”); as zonas mais claras assumem, nesse sentido, contornos de uma resistência a essa opressão (como aquela sugerida em “As mãos dos pretos”); o acúmulo do que parecem ser rostos humanos sintetiza o desespero de quem resiste com todas as forças, embora possa fazê-lo de forma ainda algo desarticulada (como as personagens de “Dina” ou as de “Inventário de imóveis e jacentes”); as mãos em desespero (nas quais é possível entrever um detalhe da tela Guernica, de Picasso) figuram tanto a tentativa de escapar da violência do colonizador, quanto a busca de um caminho de salvação (o que reflete a experiência do jovem de “A velhota”); essas mesmas mãos parecem querer superar, ainda que com gestos impensados de angústia, os entraves de uma estrutura social opressora, ou as entranhas do monstro colonizador (como o jovem oprimido de “Nhinguitimo”).