Recentemente, pesquisadores identificaram a presença de Machado de Assis entre os convidados da família imperial brasileira para a missa campal realizada em comemoração à abolição da escravatura. A fotografia mostra participantes da missa ocorrida no dia 17 de maio de 1888 no Campo de São Cristóvão, Rio de Janeiro, com a presença da princesa Isabel, do Conde D’Eu e de outras celebridades do Império, além do escritor (no destaque, circulado).
Observe a fotografia e leia o trecho de Quincas Borba:
“Na esquina da Rua dos Ourives deteve-o um ajuntamento de pessoas, e um préstito singular. Um homem, judicialmente trajado, lia em voz alta um papel, a sentença. Havia mais o juiz, um padre, soldados, curiosos. Mas, as principais figuras eram dois pretos. Um deles, mediano, magro, tinha as mãos atadas, os olhos baixos, a cor fula, e levava uma corda enlaçada no pescoço; as pontas do baraço iam nas mãos de outro preto. Este outro olhava para frente e tinha a cor fixa e retinta. Sustentava com galhardia a curiosidade pública. Lido o papel, o préstito seguiu pela Rua dos Ourives adiante; vinha do Aljube e ia para o Largo do Moura.
Rubião naturalmente ficou impressionado. Durante alguns segundos esteve como agora à escolha de um tílburi. Forças íntimas ofereciam-lhe o seu cavalo, umas que voltasse para trás ou descesse para ir aos seus negócios – outras que fosse ver enforcar o preto. Era tão raro ver um enforcado! Senhor, em 20 minutos está tudo findo! – Senhor, vamos tratar de outros negócios! E o nosso homem fechou os olhos, e deixou-se ir ao acaso.”
Machado de Assis. Quincas Borba.
A relação entre a obra de Machado de Assis e a questão afrobrasileira é complexa. Ao longo do século XX, houve o que a crítica chamou de um “branqueamento” da figura desse que é considerado nosso maior escritor.
a) A partir do trecho citado do romance Quincas Borba, é possível caracterizar o personagem Rubião como um apoiador do abolicionismo? Justifique sua resposta.
b) Explique a tensão entre a fotografia e o excerto, considerando a caracterização da sociedade brasileira do fim do século XIX, tal como representada no romance.
a) Não. O trecho não permite afirmar que Rubião seja um defensor da causa abolicionista. O protagonista de Quincas Borba é um provinciano de Barbacena, que passou a viver no Rio de Janeiro após receber uma herança. No fragmento, Rubião presencia o cortejo de um homem negro, com as mãos atadas, puxado por outro negro que fazia cumprir uma sentença de morte pronunciada por um juiz. Rubião não demonstra indignação pelo acontecimento e nem compaixão pelo condenado, mas, acima de tudo, curiosidade pelo inusitado da situação e ímpetos de continuar a assistir: “Era tão raro ver um enforcado!” Ao final do excerto, porém, “fechou os olhos e deixou-se ir ao acaso”, o que demonstra que em seu modo de vida, originário da província, predomina a acomodação frente ao regime escravocrata e a naturalização dessa barbárie representada pelo enforcamento público de um homem.
b) No excerto selecionado de Quincas Borba, dois negros são os protagonistas do acontecimento. Em uma sociedade dominada por brancos, um dos negros – que tem seu destino decidido por um juiz branco -, é levado à forca por outro negro, em exemplo claro de manutenção de uma ordem social estabelecida por brancos. O evento retratado na foto, ao contrário, visa à celebração da Abolição da Escravatura, uma promessa de transformação social em favor dos negros, mas a maioria dos presentes, incluindo a princesa Isabel, protagonista da imagem, são brancos. Em relação à presença do escritor Machado de Assis na foto, pode-se dizer que revela seu posicionamento favorável à causa abolicionista, diferentemente do que ocorre com seu personagem Rubião.