Texto 1
1Valium: medicamento introduzido no mercado em 1963 e comumente prescrito para quadros de ansiedade. Entre 1968 e 1981, foi o medicamento mais amplamente prescrito em todo o Ocidente.
Texto 2
Texto 3
A ascensão da indústria farmacêutica e do saber médico como aquele que regula as práticas por meio da dicotomia normal/anormal contribui para a formação de novos discursos acerca da medicalização. Cada vez mais presenciamos diagnósticos precoces de doenças graves como depressão, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e quadros de ansiedade. Por conta desse estado de fluidez e rapidez em que nossa sociedade se encontra, ocorre uma significativa redução do lugar para o sofrimento e para a tristeza, que passam a ser entendidos como fazendo parte do campo da irregularidade e da anormalidade e, por consequência, passam a ser rapidamente medicalizados.
(Marcele Zucolotto et al. “Sofro, logo me medico: a medicalização da vida como enfrentamento do mal-estar”. Id on Line, 2019.)
Texto 4
A medicalização da vida subjetiva promovida por correntes radicais das neurociências, a partir de uma concepção dos estados afetivos como transtornos do funcionamento cerebral por deficiência de neurotransmissores, tem contribuído para a perda ou o empobrecimento de uma das qualidades fundamentais do psiquismo: o fato de que ele só existe como trabalho permanente de representação, de simbolização do real, de resolução de conflitos. As manifestações da subjetividade vão sendo progressivamente estigmatizadas como estorvo à vida produtiva e aos ideais de felicidade imediata promovidos pela cultura das sensações corporais. Consequentemente os períodos de luto, as tristezas que a vida traz, as ansiedades e angústias passam a ser encarados como anomalias intoleráveis sobre as quais se exige rápida intervenção médica em nome do retorno rápido a um funcionamento “normal”.
(Maria Rita Kehl. “Elogio do medo”. https://artepensamento.ims.com.br. Adaptado.)
Texto 5
A medicalização inclui, por exemplo, entender como um problema médico o luto decorrente de perdas, o sofrimento por uma separação difícil ou a tristeza decorrente de uma perda financeira após a reforma da previdência. Esse último exemplo retrata uma dimensão perversa da medicalização, que desconsidera fenômenos sociais promotores de sofrimento psíquico.
(Marcelo Kimati. “Medicalização e sociedade contemporânea”. Revista Cult, abril de 2023.)
Com base nos textos apresentados e em seus próprios conhecimentos, escreva um texto dissertativo-argumentativo, empregando a norma-padrão da língua portuguesa, sobre o tema:
Medicalização da vida: a quem interessa?
Análise da proposta
A proposta de redação da Unesp deste ano solicita aos candidatos uma dissertação em prosa sobre o tema “Medicalização da vida: a quem interessa?”. A temática, de cunho social e filosófico, convida os estudantes a refletirem sobre a crescente tendência de transformar experiências humanas naturais em diagnósticos médicos e suas implicações na sociedade contemporânea. O tema é relevante, atual e interessante, o que corresponde à tradição da banca examinadora.
A coletânea apresenta dois quadrinhos (um de Quino e outro de André Dahmer) e três textos dissertativos de diferentes autores.
No Texto 1, “Potentes, prepotentes e impotentes”, Quino critica de forma satírica a dependência de medicamentos, sobretudo aqueles de uso psiquiátrico, destacando a facilidade com que soluções farmacológicas são apresentadas para lidar com os desafios emocionais do cotidiano. Nessa imagem, o Estado está representado na figura de policiais que distribuem medicamentos para o controle populacional, com o intuito de impedir manifestações de qualquer natureza.
No Texto 2, “Palestra sobre novos tempos”, de André Dahmer, o autor critica a medicalização irresponsável de crianças. O candidato poderia mostrar o quanto as empresas lucram com essas práticas.
Já no Texto 3, Marcele Zucolotto analisa, em “Sofro, logo me medico: a medicalização da vida como enfrentamento do mal-estar”, o papel da sociedade acelerada na redefinição de sentimentos como tristeza e ansiedade, colocando-os no campo da anormalidade e promovendo sua medicalização.
Por sua vez, em “Elogio do medo”, Maria Rita Kehl alerta, no Texto 4, sobre o impacto dessa medicalização na subjetividade humana, destacando a perda do trabalho psíquico de simbolização e resolução de conflitos. Isso revela a incapacidade da sociedade de pensar em soluções a longo prazo que exigem compreensão das subjetividades e o entendimento de que as emoções são transitórias e dependem de contextos únicos.
Finalmente, Marcelo Kimati, em “Medicalização e a sociedade contemporânea”, no Texto 5, amplia o debate ao incluir a dimensão social, apontando como a medicalização pode ocultar os fatores estruturais responsáveis pelo sofrimento. Assim, a medicalização se torna uma forma de gestão do sofrimento psíquico diante das injustiças do neoliberalismo.
Encaminhamentos possíveis
Como o tema é apresentado na forma de uma pergunta direta, é interessante que haja uma resposta acerca de a quem interessa a medicalização da vida. Ao desenvolver a resposta, contudo, permite-se também a abordagem de causas, consequências e do contexto social e econômico dessa questão.
Assim, a redação poderia ter desenvolvido, entre outros, os seguintes encaminhamentos:
- A indústria farmacêutica desempenha um papel central na promoção da medicalização da vida. Ao lucrar com a venda de medicamentos, as empresas farmacêuticas têm interesse em expandir o mercado consumidor, transformando condições cotidianas, como tristeza, ansiedade e luto, em doenças que requerem tratamento medicamentoso. Essa busca por lucro se intensifica com o desenvolvimento de novas drogas, muitas vezes com efeitos colaterais desconhecidos a longo prazo. Assim, pode ser apontada, claramente, como um dos atores a quem interessa a medicalização.
- Pode-se argumentar também que a medicalização serve ao capitalismo ao garantir que indivíduos voltem rapidamente à produtividade. Estados emocionais como tristeza, luto ou angústia são vistos como "obstáculos" à eficiência e, por isso, devem ser tratados rapidamente para manter a força de trabalho ativa. O conceito de Sociedade do Cansaço, desenvolvido por Byung-Chul Han, pode ser relacionado a esse aspecto. Segundo ele, vivemos em uma sociedade que exalta a produtividade, o desempenho e a eficiência, valores centrais do capitalismo contemporâneo. Nesse contexto, o sujeito é transformado em um "empreendedor de si mesmo", constantemente pressionado a maximizar seu rendimento em todas as esferas da vida. O esgotamento e o cansaço, então, passam a ser vistos como patologias a serem medicadas.
- A medicalização excessiva tem consequências negativas para os indivíduos e para a sociedade. Ao transformar questões normais da vida em doenças, a medicalização limita a capacidade de lidar com os desafios e frustrações inerentes à experiência humana. Além disso, o uso excessivo de medicamentos pode gerar dependência, efeitos colaterais e mascarar problemas mais profundos, que deixam de ser tratados de forma adequada. Do ponto de vista social, a medicalização excessiva contribui para a estigmatização do sofrimento psíquico e para a medicalização da vida social e mesmo para a falta de pensamento crítico da população.
- As ideias de Michel Foucault poderiam ser articuladas ao tema. O filósofo argumenta que, na era moderna, o poder político passou a operar sobre a vida biológica dos indivíduos e das populações, conceito que ele denomina biopolítica. Esse poder atua regulando corpos e comportamentos para otimizar a vida produtiva e a ordem social. A medicalização da vida pode ser vista como uma extensão dessa biopolítica, pois normaliza certos estados emocionais ou psicológicos — como tristeza, ansiedade ou luto — para manter indivíduos funcionais no sistema econômico e social. Além disso, pode-se dizer que esse a medicalização da vida cotidiana é uma forma de poder disciplinar usado, por exemplo, em escolas.
- Também seria possível citar o documentário "Take Your Pills", da Netflix, que explora como medicamentos como Adderall e Ritalina, destinados ao tratamento de TDAH, são amplamente utilizados para aumentar a produtividade e o desempenho acadêmico e profissional. Ele ilustra o impacto da medicalização no reforço de uma cultura produtivista, em que o uso de substâncias farmacológicas é normalizado para atender às altas demandas de uma sociedade que valoriza eficiência acima de tudo.
- É possível também elaborar uma espécie de ressalva, apontando que, em alguns casos, os próprios pacientes também podem ser beneficiados. Embora a crítica à medicalização da vida seja pertinente, é essencial reconhecer os benefícios dos medicamentos psiquiátricos quando bem empregados. Eles desempenham um papel crucial no tratamento de transtornos mentais graves, como depressão severa, esquizofrenia e transtorno bipolar, proporcionando estabilidade emocional e funcionalidade aos pacientes. Além disso, para muitas pessoas, esses medicamentos são um suporte indispensável para melhorar a qualidade de vida, permitindo que enfrentem situações que seriam insuportáveis sem intervenção médica.