Para responder à questão, leia os dois primeiros capítulos do romance Quincas Borba, de Machado de Assis.

Capítulo I

Rubião fitava a enseada, — eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra coisa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista. Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Túnis, que lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade.

— Vejam como Deus escreve direito por linhas tortas, pensa ele. Se mana Piedade tem casado com Quincas Borba, apenas me daria uma esperança colateral. Não casou; ambos morreram, e aqui está tudo comigo; de modo que o que parecia uma desgraça...

Capítulo II

Que abismo que há entre o espírito e o coração! O espírito do ex-professor, vexado daquele pensamento, arrepiou caminho, buscou outro assunto, uma canoa que ia passando; o coração, porém, deixou-se estar a bater de alegria. Que lhe importa a canoa nem o canoeiro, que os olhos de Rubião acompanham, arregalados? Ele, coração, vai dizendo que, uma vez que a mana Piedade tinha de morrer, foi bom que não casasse; podia vir um filho ou uma filha… — Bonita canoa! — Antes assim! — Como obedece bem aos remos do homem! — O certo é que eles estão no céu!

(Quincas Borba, 2012.)

a) Que embate é narrado no segundo capítulo? De que pensamento o espírito de Rubião se envergonha?

b) Que procedimento estilístico, característico da prosa madura de Machado de Assis, é empregado no primeiro capítulo? Justifique sua resposta.

a) O embate no segundo capítulo ocorre entre os pensamentos de Rubião, – nos quais ele comemora o fato de a irmã e do amigo terem morrido antes de se casarem, o que possibilitou que ele fosse seu herdeiro universal –, e sua moral, o “espírito do ex-professor”, que se envergonha desses pensamentos.

b) Trata-se da ironia, marca estilística muito presente no trabalho do autor em sua maturidade. No primeiro capítulo, ao mencionar a “sensação de propriedade” de Rubião, o narrador reforça o fato de ela referir-se a “tudo” e, na sequência, aproxima “chinelas” e “céu” como parte dessa sensação. As reticências utilizadas no encerramento do capítulo sugerem que a morte da irmã tenha sido um golpe de sorte, embora tivesse parecido uma desgraça.