Para responder à questão, leia o poema “O ferrageiro de Carmona”, do poeta João Cabral de Melo Neto, publicado originalmente em 1987 no livro Crime na Calle Relator.
Um ferrageiro1 de Carmona2
que me informava de um balcão:
“Aquilo? É de ferro fundido,
foi a fôrma que fez, não a mão.
Só trabalho em ferro forjado,
que é quando se trabalha ferro;
então, corpo a corpo com ele;
domo-o, dobro-o, até o onde quero.
O ferro fundido é sem luta,
é só derramá-lo na fôrma.
Não há nele a queda de braço
e o cara a cara de uma forja.
Existe grande diferença
do ferro forjado ao fundido;
é uma distância tão enorme
que não pode medir-se a gritos.
Conhece a Giralda3 em Sevilha?
Decerto subiu lá em cima.
Reparou nas flores de ferro
dos quatro jarros das esquinas?
Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas numa outra língua.
Nada têm das flores de fôrma
moldadas pelas das campinas.
Dou-lhe aqui humilde receita,
ao senhor que dizem ser poeta:
o ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarreia.
Forjar: domar o ferro à força,
não até uma flor já sabida,
mas ao que pode até ser flor
se flor parece a quem o diga.”
(João Cabral de Melo Neto. Poesia completa e prosa, 2008.)
1ferrageiro: negociante de ferro; no caso do poema, também ferreiro, ou seja, artesão que trabalha o ferro.
2Carmona: cidade espanhola.
3Giralda: Torre de Giralda, em Sevilha.
a) Na sétima estrofe, o ferrageiro estabelece uma comparação entre a ferraria (ou seja, a arte de manusear e modelar o ferro) e a poesia. Nesse contexto, o que significa dizer que “nem deve a voz [da poesia] ter diarreia”?
b) Transcreva um verso da sexta estrofe em que ocorre a elipse de um substantivo. Que substantivo foi suprimido?
a) Com a fala “nem deve a voz ter diarreia”, o ferrageiro quer indicar que a poesia deve ser feita com esforço, numa verdadeira “queda de braço” do poeta com as palavras. Nesse processo de criação não deve haver lugar para a expressão verbal descuidada e prolixa (figurativizada na imagem pejorativa de “diarreia”). Essa atitude racionalista e cuidadosa caracteriza a obra cabralina, que por essa razão costuma ser classificada como “poesia-engenheira”.
b) Elipse é uma figura de linguagem que consiste na omissão de um termo que pode ser subentendido no contexto. O verso em que ocorre uma elipse é “moldadas pelas das campinas”. O substantivo suprimido foi “fôrmas”.