Em 1843, Gonçalves Dias compôs o poema “Canção do Exílio”, que serviu de inspiração a vários poetas ao longo do tempo, de que são exemplos o poema de José Paulo Paes e a canção de Chico Buarque de Holanda e Tom Jobim, reproduzidos a seguir.
Canção do exílio
José Paulo Paes
Um dia segui viagem
sem olhar sobre o meu ombro.
Não vi terras de passagem
Não vi glórias nem escombros.
Guardei no fundo da mala
um raminho de alecrim.
Apaguei a luz da sala
que ainda brilhava por mim.
Fechei a porta da rua
a chave joguei ao mar.
Andei tanto nesta rua
Que já não sei mais voltar
(PAES, José Paulo. Prosas seguidas de odes mínimas.
São Paulo: Companhia das Letras, p. 19, 1992.)
Sabiá
Chico Buarque de Holanda – Tom Jobim
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá
E é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra de uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos de me enganar
Como fiz enganos de me encontrar
Como fiz estradas de me perder
Fiz de tudo e nada de te esquecer
(CHEDIAK, Almir (Org.). Songbook Tom Jobim. Rio
de Janeiro: Lumiar Editora, p. 88-89, 1990.)
a) Identifique, em cada poema, a posição do eu-lírico em relação ao exílio. Justifique sua resposta apontando elementos de ambos os textos.
b) Os dois poemas reproduzidos acima apresentam “negações”, a exemplo das que vemos nos versos “sem olhar sobre o meu ombro”, “não vi terras de passagem”, “não vi glórias nem escombros”, “que já não sei mais voltar”, “(...) uma palmeira que já não há”, “(...) a flor que já não dá”. Interprete comparativamente, em cada um dos poemas, o sentido da recorrência das negações.
a) O enunciador do poema de José Paulo Paes confere ao exílio uma dimensão temporal, tratando-o como um período da vida que foi superado, uma espécie de rito de passagem (“Um dia segui viagem”) que marca o seu crescimento pessoal; assim, ao revelar que “a chave joguei ao mar”, ele confessa seu desejo de não voltar e nem olhar para trás (“sem olhar sobre o meu ombro”), de seguir adiante em seu processo de amadurecimento, agindo de forma decidida no sentido de abandonar definitivamente o passado (“Apaguei a luz da sala / que ainda brilhava por mim”). Como se vê, trata-se de uma postura de caráter mais pessoal. Já o enunciador da letra da canção de Chico Buarque e Tom Jobim aborda o exílio em uma dimensão espacial, associando-o a uma terra da qual se separa e à qual pretende retornar (“Vou voltar / Sei que ainda vou voltar”). Diferentemente do enunciador do poema, que registra um momento de superação do passado, o da canção se propõe a superar o presente, no sentido de resgatar os símbolos de uma pátria (“palmeira”, “flor”) que estão subtraídos ou anulados (“já não há”, “já não dá”) por uma realidade marcada pelas “noites que [ele] não queria” e que deseja “espantar”, para “anunciar o dia” em que tal “noite” não esteja mais em vigor. Nesse sentido, trata-se de uma postura mais social. Por fim, deve-se acrescentar que, no poema de José Paulo Paes, o exílio possui um teor positivo, representando um amadurecimento; já na letra da canção, o exílio possui um teor negativo, já que representa o afastamento efetivo do eu lírico de sua terra natal.
b) As negações presentes nos dois textos trazem como aspecto semelhante o tom de decisão que as acompanha. No poema, o enunciador afirma categoricamente sua intenção de superar o passado, enquanto, na letra da canção, nota-se o tom resoluto com que o enunciador anuncia seu desejo de retorno à terra (“Vou voltar”, expressão que se repete muitas vezes). No entanto, nos dois textos temos “negações” distintas. Enquanto as negativas do eu lírico do poema se voltam para ele mesmo e reafirmam uma postura pessoal (“Não vi terras”, “Não vi glórias”, “já não sei mais voltar”), as do enunciador da canção se dirigem a um outro, personificado na terra marcada por lacunas e ausências, como a “palmeira / Que já não há” e “a flor / Que já não dá”. Além disso, as negações do poema funcionam como reconhecimento de um período deixado para trás por vontade do enunciador, enquanto as negações da canção remetem a uma terra abandonada pelo enunciador sem ser por vontade própria, e, ainda, despojada de vida (“palmeira”, “flor), em um processo que também não conta com sua participação e seu apoio. As imagens eminentemente românticas (inclusive retiradas do poema original de Gonçalves Dias) do “sabiá”, da “palmeira” e da “flor” configuram aqui uma utopia social de plenitude e de liberdade da qual a pátria se encontra distante.