A respeito da composição “Os bichos” (1960), abaixo reproduzida, diz a artista Lygia Clark:

É esse o nome que dei às minhas obras desse período, pois seu caráter é fundamentalmente orgânico. Além disso, a dobradiça que une os planos me faz pensar em uma espinha dorsal. A disposição das placas de metal determina as posições do “Bicho”, que à primeira vista parecem ilimitadas. Quando me perguntam quantos movimentos o “Bicho” pode fazer, respondo: “Eu não sei, você não sabe, mas ele sabe....” O “Bicho” não tem avesso. Cada “Bicho” é uma entidade orgânica que se revela totalmente dentro de seu tempo interior de expressão. Ele tem afinidade com o caramujo e a concha. É um organismo vivo, uma obra essencialmente atuante. Entre você e ele se estabelece uma integração total, existencial. Na relação que se estabelece entre você e o “Bicho” não há passividade, nem sua nem dele.

Extraído do Portal Lygia Clark: https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/59268/os-bichos

A pintora e escultora mineira Lygia Clark (1920-1988) despontou no Brasil durante a segunda metade do século XX, juntamente com o movimento conhecido como Neoconcretismo. Destacou-se pela produção de objetos tridimensionais, com a introdução de suportes materiais que se tornam flexíveis e manuseáveis pelo público frequentador de museus. Nesse sentido, os espectadores das obras de arte deixam de se ater ao aspecto exclusivamente contemplativo ou intelectual, para participar e interagir com os artefatos artísticos expostos.

m face desse novo conceito, emergente nos anos 1950 e 1960, avalie que tipo de alcance sobre a realidade uma obra como “Os bichos” pode ter quando sai do plano estático bidimensional e atinge o âmbito dinâmico da tridimensionalidade. Qual impacto na interação com os visitantes de um museu um objeto artístico enseja no momento em que esse se torna móvel e manipulável, ante um tradicional quadro, inerte e intocável?

A resposta pode ainda adicionar elementos contextuais do período em que o trabalho foi produzido, final dos anos 1950, sejam aspectos político-sociais, sejam dados artístico-culturais da época, desde que contribuam para o entendimento do princípio neoconcreto de “obra participante”.

“Os bichos”, série de esculturas produzidas por Lygia Clark em 1960, apresenta uma característica singular: por apresentarem articulação entre as peças que compõem cada escultura, os objetos podem ser transformados, assumindo, portanto, formas variáveis, sem que a sua integridade seja violentada. Essa flexibilidade só pode ocorrer porque as obras se apresentam como estruturas tridimensionais. As obras bidimensionais, como as telas, por exemplo, não podem oferecer tamanha flexibilidade. Essa característica, apresentada pela série “Os bichos”, contribui para a produção de um efeito significativo, no que diz respeito à interação com o público: diante das esculturas, as pessoas são estimuladas a interferir em sua composição, articulando as peças de modo a transformar os objetos. Esse convite à participação, por si, rompe com um dos preceitos que frequentemente dirigem a relação entre público e obra: a proibição do contato. Estabelecido esse princípio de liberdade, tal modo de interação estimula a criatividade do público, redefinindo seu papel no processo de interação. Nesse sentido, o público deixa de ser mero observador intelectual de um trabalho já consolidado, tornando-se sujeito ativo, participante, transformador. Essa redefinição de papel acaba por ganhar contornos políticos mais amplos, uma vez que a obra, estimulando a interferência do público, estimula, por extensão, uma interferência mais ampla, que transforme a própria realidade social em que tal público se insere.  É possível identificar, nesse processo, sinais de um alinhamento entre “Os bichos” e os trabalhos artísticos que se definem como “participantes”, isto é, como textos capazes de suscitar reflexões críticas a respeito das estruturas sociais.