REDAÇÃO ENEM 2024
Nesta edição de 2024, o ENEM trouxe como discussão, em sua proposta de redação, um tema atual e de grande relevância social: “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Como de costume, foi solicitada aos candidatos a elaboração de um texto dissertativo-argumentativo, neste ano com base em uma coletânea constituída por seis textos motivadores:
O texto I é uma “aterrissagem” no tema e, por isso, contribui para que o aluno compreenda melhor a frase temática e o significado das suas palavras-chave. Neste excerto, o verbete do dicionário “Houaiss” traz uma definição de “herança”, a saber, uma série de legados transmitidos de geração em geração, formando uma cultura, ou seja, aquilo que é cultivado.
O texto II, “A epistemologia da ancestralidade”, de Eduardo Oliveira, aponta como as culturas africanas foram reduzidas a aspectos folclóricos e estereotipados pela história “dita como oficial”, o que marginaliza esse grupo e suas manifestações. Trata-se de uma reflexão que poderia embasar a análise das causas da desvalorização da herança africana.
O texto III apresenta um provérbio africano: “Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens”. Em outros termos, valorizar o passado é condição fundamental para pensar o futuro. Dessa forma, o reconhecimento do valor da cultura africana não é entendido como uma revisitação da história, mas como uma maneira de reinterpretar o presente e o futuro.
O texto IV, extraído do “Jornal da Unesp”, apresenta o relato de uma professora negra que destaca a necessidade de a escola construir narrativas que não reproduzam apenas o discurso da história do colonizador. A importância de narrativas decoloniais no ambiente escolar é fundamental para que os alunos tenham outros referenciais e compreendam a importância da representatividade em diferentes esferas sociais, o que poderia também ser aproveitado para refletir sobre as propostas de intervenção plausíveis.
O texto V traz o samba-enredo “Histórias Para Ninar Gente Grande”, de 2019, da Estação Primeira de Mangueira. A letra relembra e enaltece figuras históricas marginalizadas, como Dandara, e episódios frequentemente omitidos ou distorcidos nos livros de História do Brasil, a exemplo da abolição da escravidão, atribuída à Princesa Isabel. Vale lembrar que o título faz menção à obra “Canção para ninar menino grande”, de Conceição Evaristo.
Por fim, o texto VI pode desencadear reflexões sobre propostas de intervenção, uma vez que apresenta a imagem de um passeio escolar feito por alunos em um dos pontos relevantes da história de resistência negra, tal qual a Pedra do Sal, localizada no Rio de Janeiro. Trata-se, portanto, de um exemplo de como ações pontuais na educação formal de jovens podem contribuir para a valorização da herança dos povos africanos.
Encaminhamentos possíveis:
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Algumas das possíveis causas da desvalorização da herança africana no Brasil:
- A forma como a história do Brasil foi (ou é) tradicionalmente narrada, sob a ótica eurocêntrica e dominada pela visão do homem branco, constitui um discurso que desvaloriza ou subvaloriza a cultura africana. Essa abordagem exclui ou distorce a experiência e a contribuição de grupos minorizados, entre eles os povos africanos e afro-brasileiros, o que dificulta que sua herança seja reconhecida e valorizada. Nesse contexto, vale destacar a importância dos discursos das ciências humanas, especialmente na educação básica, para a formação da visão que temos do passado e, por conseguinte, das relações atuais que estabelecemos com os povos formadores de nossa sociedade.
- Persiste na sociedade brasileira um viés negativo em relação à memória e à cultura dos povos africanos, geralmente reduzida à escravidão e à marginalização de suas manifestações, como o que ocorreu com o samba (e suas variações), o rap, o funk, a capoeira ou a religiosidade. Uma vez estigmatizadas, as contribuições culturais não são percebidas como tais.
- A falta de conhecimento em relação às contribuições dos povos africanos para a cultura nacional deriva de uma falha na execução dos currículos da educação básica no país. A despeito da promulgação da Lei 11.645, de 10 de março de 2008, a qual tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena no ensino fundamental e médio em escolas públicas e particulares, há entraves para sua efetivação, como a deficiência na formação dos professores, a precária presença de livros sobre o tema nas bibliotecas dessas escolas e a pouca visibilidade do tema em exames vestibulares.
- A manutenção do pensamento racista, discriminatório e, por vezes, estereotipado em relação à cultura dos povos africanos dificulta o movimento de sua valorização. Os séculos de escravidão construíram uma visão de mundo enviesada que os desvaloriza, desqualifica seus elementos culturais e estabelece, portanto, as bases do racismo estrutural e sistêmico.
- Apesar de resistências ideológicas, o Estado tem sofrido pressões de setores políticos, artísticos e da sociedade civil em geral que clamam por medidas de valorização do passado africano nacional. São recentes, portanto, ações como a elaboração de leis que determinam feriados relacionados à tradição e valorização da cultura negra ou mesmo que estabelecem o estudo da história africana na educação básica. Por se tratarem de medidas recentes, elas ainda são incipientes frente a séculos de invisibilidade e desvalorização.
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Algumas das possíveis consequências da desvalorização:
- A intolerância religiosa pode ser observada como uma possível consequência, como em casos emblemáticos que vão desde o embranquecimento de entidades religiosas (como o da divindade Iemanjá), até a queima de diversos terreiros de umbanda e candomblé nos últimos anos ou a morte de lideranças religiosas, como a de Mãe Bernadete, ialorixá e líder quilombola de 72 anos morta a tiros em 2023.
- É possível observar, também, a tímida divulgação de importantes personalidades da cultura africana nos currículos escolares que, por vezes, privilegiam leituras de autores que reforçam um cânone eurocêntrico e excludente, ou as reflexões históricas e geográficas em torno de perspectivas pouco conectadas com a valorização da herança africana. Nomes como Zumbi dos Palmares, Luiz Gama e Carolina Maria de Jesus (conforme constam da coletânea) são estudados, em muitos contextos, com ênfase no sofrimento ou como efemérides, quando deveriam cruzar o currículo e as reflexões de toda a vida escolar, segundo a ótica da valorização cultural dos povos africanos.
- Por fim, a perpetuação de preconceitos e estereótipos são importantes consequências que fortalecem a marginalização, o apagamento e a ausência de representatividade de comunidades africanas. Dessa maneira, além da consequência imediata para as gerações atuais, a não perpetuação desses legados africanos faz com que as gerações que virão não se apropriem de sua ancestralidade, não criem sensação de identidade e pertencimento nem façam frente a injustiças e violências.
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Propostas de Intervenção para a valorização da herança africana no Brasil:
- Agentes: Ministério da Igualdade Racial (MIR) é o órgão do governo federal brasileiro que tem como propósito planejar, coordenar e executar políticas públicas para combater o racismo e promover a igualdade racial no país, bem como, por extensão, a valorização da herança cultural africana.
- Cultura na vida pública: pode-se pensar sobre a construção de memórias coletivas, como por meio de estátuas, monumentos e memoriais, bem como a devolução de objetos pertencentes à memória negra e que promovam a conscientização por intermédio do contato com eles.
- Educação antirracista: a promoção de caminhos para uma educação antirracista dentro das escolas, como também fora delas. Podem ser citadas datas comemorativas, como o Dia da Consciência Negra (20 de novembro, lei nº 14.759/2023) e também o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé (21 de março, lei nº 14.519/2023) como dias para além da comemoração simbólica ou do feriado, mas como, de fato, dias para a promoção de atividades que tragam momentos de reflexão, valorização da cultura negra.
- Desconstrução de estereótipos: a desconstrução de narrativas negativas sobre a população negra está diretamente relacionada ao desafio de mudar a percepção da sociedade sobre a contribuição da herança africana.
- Decolonialidade: pode ajudar a valorizar a herança africana, ao desafiar narrativas que desconsideram ou desvalorizam a contribuição africana e afro-brasileira para a cultura e o conhecimento do país. Ela pode promover a inclusão das histórias, cosmovisões, epistemologias (formas de entender o mundo) e práticas africanas e afro-brasileiras na educação, na arte, na filosofia e em outras áreas.
Considerando que a incorporação de repertório legitimado e autoral (ou seja, externo à coletânea) é fundamental na prova de redação do ENEM, o candidato poderia fazer referência, por exemplo, a leis, ideias de filosóficas, sociólogos ou produções audiovisuais pertinentes ao tema, tais como:
- Filosofia/Sociologia: "Pequeno Manual Antirracista" e “Lugar de fala”, de Djamila Ribeiro; Cida Bento; Lélia González; Sueli Carneiro; Grada Quilomba; Antônio Bispo dos Santos;
- Literatura: "O perigo de uma história única", de Chimamanda Ngozi Adichie; "Olhos d’Água", de Conceição Evaristo; "Nós matamos o cão tinhoso!", de Luís Bernardo Honwana; “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus; “Água funda”, de Ruth Guimarães; “Niketche: Uma história de poligamia”, de Paulina Chiziane.
- Música: canções de Cartola, Racionais Mc 's, Emicida, Criolo e Djonga.
- Atualidades: Acordo de conciliação no território ocupado pelos quilombolas de Alcântara (MA).
- Autoridade: Mercedes Baptista, a primeira bailarina negra do corpo de baile permanente do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Atualmente, a artista tem uma estátua no Largo São Francisco da Prainha, Saúde, RJ.
- Podcast: Mano a Mano, episódio “Questão Quilombola”, Selma Dealdina Mbaye (secretária executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas - Conaq) e Jurandy Pacífico (gestor cultural e liderança do Quilombo Pitanga de Palmares): “As pessoas desconhecem a história do Brasil. Quantas pessoas aqui estudaram sobre os quilombos na escola?”, questionou Mbaye.