Texto 1
Texto 2
No Brasil, o anonimato é proibido em todas as formas de publicações. Está na letra da lei, no inciso IV do artigo 5º da Constituição Federal, em palavras muito claras e muito simples: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Com o advento da internet, porém, o quadro deixou de ser tão claro e tão simples. Na realidade digital, a letra da lei talvez seja letra morta.
As tecnologias digitais abriram muitas portas para manifestações de autores que se escondem, se esquivam, escapam a qualquer forma de identificação. O navegador Google Chrome concede ao seu usuário a abertura de uma “janela anônima”. Trata-se, como se vê, de um serviço ao alcance de qualquer um do público. Isso é mau? Difícil dizer. Antes de ser uma conduta necessariamente pérfida ou dolosa, o expediente de quem oculta o próprio nome pode ser uma estratégia legítima e, às vezes, uma estratégia de sobrevivência. Na história da democracia não foram poucas as ocasiões em que a ocultação do nome do autor contribuiu para a expansão das liberdades. O filósofo inglês John Locke (1632-1704) vivia exilado na Holanda sob nome falso quando publicou anonimamente sua Carta sobre a tolerância, em 1689. Hoje sua obra é reverenciada como um alicerce da noção essencial de que a fé religiosa de cada um é assunto pessoal, privado, não podendo ser determinada pelo poder estatal. Graças ao anonimato, não nos esqueçamos. Não fosse o recurso de sonegar aos leitores seu nome verdadeiro, é possível que Locke nunca tivesse conseguido publicar sua Carta sobre a tolerância. Bem sabemos que na internet ninguém é John Locke. As formas de estelionato de opinião proliferam em variações tão criativas quanto malignas. A cada eleição, pipocam blogs e sites apócrifos dedicados exclusivamente a enxovalhar a honra alheia. Isso não quer dizer que não existam os bons anônimos. Eles existem. Usam em segredo as redes sociais para denunciar desmandos em regimes autoritários — e também em regimes ditos democráticos. Mesmo sem ser John Locke, ajudam a civilização. O que fazer? Como resolver o problema do anonimato na rede? Seria possível — e seria desejável — regulá-lo? Em tempo: será que isso é de fato um problema?
Em boa medida, a internet tem sido um ambiente livre. Algum grau de manifestações anônimas integra e complementa a liberdade. Em poucas palavras, não haveria liberdade sem pelo menos um pouco de anonimato.
(Eugênio Bucci. “Cyberanonimato”. www.estadao.com.br, 18.04.2013. Adaptado.)
Texto 3
O ódio é um afeto e como tal tem direito à plena cidadania entre outros afetos, emoções e sentimentos. Daí que seja vã e, no limite, perniciosa toda tentativa de eliminar afetos, tais como a soberba (orgulho excessivo), a avareza (apego excessivo a bens), a inveja (geralmente traduzida pelo desejo de impor tristeza ao outro), a gula (desejo exagerado de comer ou beber), a luxúria (apego demasiado aos prazeres), e finalmente a ira, ou seja, o ódio furioso, que ultrapassa certos limites, geralmente traduzidos pela ofensa, desrespeito, agressão ou violência.
No discurso de ódio ocorre uma espécie de perda de modulação social desse afeto, uma desregulação do seu sistema de mediações. Isso pode ocorrer em função de um efeito digital muito simples: a monetização. Se o ódio engaja, coletiviza e intensifica, ele obviamente se traduzirá pela elevação do nível de atratividade digital.
A questão, porém, é que o anonimato digital suspende o circuito de regulação de afetos, pelos quais meço minhas palavras, pondero meu tom ou avalio as implicações do que digo. Ser autor é condição para possuir autoridade, logo poder perdê-la. Daí que o antídoto que coloco aqui em discussão chame-se autoria ou perda do anonimato.
(Christian Dunker. “Fim do anonimato digital reduziria danos causados pelo discurso de ódio”. www.uol.com.br, 26.04.2023. Adaptado.)
Com base nos textos apresentados e em seus próprios conhecimentos, escreva um texto dissertativo-argumentativo, empregando a norma-padrão da língua portuguesa, sobre o tema:
O fim do anonimato digital reduziria danos causados pelo discurso de ódio?
Análise da Proposta
Nesta edição, a prova de redação da Unifesp requisitou aos candidatos uma dissertação em prosa sobre o tema “O fim do anonimato digital reduziria danos causados pelo discurso de ódio?”. Essa temática, em forma de pergunta e sobre uma importante controvérsia social recente, segue a linha adotada pela banca em provas anteriores.
A coletânea apresenta uma tirinha e dois artigos de opinião. O texto 1, uma tirinha de Richard Bittencourt, aponta a incoerência do personagem, que critica usuários do Twitter por xingar e, como reação, decide xingá-los. Isso aponta para a prevalência desse tipo de conteúdo nas redes sociais. O texto 2, um artigo de opinião do professor de comunicação Eugênio Bucci, aborda a presença do anonimato na internet mesmo com a sua proibição constitucional. O autor sustenta que algum nível de anonimato deve existir, em nome da liberdade. O texto 3, outro artigo de opinião, do psicanalista e professor de psicologia Christian Dunker, aborda o anonimato e seu papel no discurso de ódio. Para ele, a autoria é fundamental para a responsabilidade de quem se expressa, o que implica a defesa do fim do anonimato.
Encaminhamentos possíveis
A redação deve defender uma resposta explícita à pergunta, ainda que seja possível lidar com os dois lados da questão ao longo da argumentação. Nesse sentido, caberiam, entre outros, os seguintes encaminhamentos:
- Conforme retrata o texto 1, o discurso de ódio está bastante presente nas redes sociais, por exemplo em postagens e reações a outros usuários. E, seguindo a lógica do texto 3, é a falta de inibição trazida pelo anonimato que possibilita essas expressões. Nesse sentido, o seu fim poderia reduzir esse tipo de manifestação;
- A indicação de autoria é fundamental do ponto de vista ético e jurídico, já que possibilita que as pessoas respondam pelas opiniões que expressam. Pode-se pensar em casos como o do influenciador digital Monark, punido pelas redes sociais e criticado pela sociedade porque teria defendido a existência de um partido nazista no Brasil. Com o anonimato, mensagens explicitamente preconceituosas seguem impunes;
- A defesa do fim do anonimato também pode levar em conta o paradoxo da tolerância, expressão do filósofo Karl Popper. Segundo ele, a sociedade democrática não deve permitir discursos intolerantes, já que isso permitiria o crescimento de tendências intolerantes e, no limite, um risco à democracia. Dessa forma, o fim do anonimato permitiria que se exercesse melhor esse limite legítimo;
- O fim do anonimato poderia reduzir o discurso de ódio, já que a presença deste nas redes está relacionada ao fato de esse conteúdo produzir engajamento, como aponta o texto 3. Se as pessoas não fossem anônimas, tomariam mais cuidado com essa forma de discurso, mesmo com esse ganho de popularidade. Afinal, poderiam ser responsabilizadas;
- A relação entre o funcionamento das redes sociais e o discurso de ódio poderia ser reforçada por menção a obras como a série Black Mirror ou o documentário O dilema das redes;
- Como indica o texto 2, o anonimato tem um papel histórico em sociedades democráticas, já que pode permitir denúncias de injustiças ou a defesa de importantes ideias consideradas censuráveis em algum contexto. Dessa forma, mesmo que o seu fim reduzisse o discurso de ódio, isso também impediria usos positivos do anonimato. Nesse sentido, era possível citar os grupos Anonymous ou a obra de ficção na qual se inspiram, V de Vingança, originalmente uma série em quadrinhos de Alan Moore;
- Outro exemplo de que o fim do anonimato traria efeitos negativos é que esse recurso também é usado na arte, como mostram os trabalhos assinados por Banksy (artista plástico de rua) e Elena Ferrante (romancista), considerados bastante influentes, mesmo que optem pelo anonimato.