Leia um trecho do romance Memórias de um sargento de milícias, do escritor Manuel Antônio de Almeida, para responder à questão.

Cremos, pelo que temos referido, que para nenhum dos leitores será ainda duvidoso que chegara ao Leonardo a hora de pagar o tributo de que ninguém escapa neste mundo, ainda que para alguns seja ele fácil e leve, e para outros pesado e custoso: o rapaz amava. É escusado dizer a quem.

Como é que a sobrinha de D. Maria, que a princípio tanto desafiara a sua hilaridade por esquisita e feia, lhe viera depois a inspirar amor, é isso segredo do coração do rapaz que nos não é dado penetrar: o fato é que ele a amava, e isto nos basta. Convém lembrar que se pela sorte de um pai se pode augurar1 a de um filho, o Leonardo em matéria de amor não prometia decerto grande fortuna. E com efeito, logo depois da noite do fogo no Campo2, em que as coisas começavam a tomar vulto, principiou a roda a desandar-lhe em quase todos os sentidos. Luisinha, uma vez extinto o entusiasmo que, suscitado pelas emoções que experimentara na noite do fogo, a acordara da sua apatia, voltara de novo ao seu antigo estado: e, como de tudo esquecida, na primeira visita que o barbeiro e o Leonardo fizeram a D. Maria depois desses acontecimentos, nem para este último levantara os olhos; conservara-se de cabeça baixa e olhos no chão.

(Memórias de um sargento de milícias, 2003.)

1augurar: adivinhar.
2fogo no Campo: referência à Festa do Divino (celebração religiosa de origem católica), comemorada com fogos de artifício.

A não onisciência do narrador das Memórias de um sargento de milícias está bem exemplificada no seguinte trecho:

  • a

    “é isso segredo do coração do rapaz que nos não é dado penetrar” (2º parágrafo). 

  • b

    “É escusado dizer a quem” (1º parágrafo). 

  • c

    “o fato é que ele a amava, e isto nos basta” (2º parágrafo). 

  • d

    “pela sorte de um pai se pode augurar a de um filho” (2º parágrafo). 

  • e

    “principiou a roda a desandar-lhe em quase todos os sentidos” (2º parágrafo).

A onisciência de um narrador é definida a partir de seu acesso aos sentimentos e pensamentos das personagens. Em Memórias de um sargento de milícias, essa onisciência é relativa, porque, por vezes, o narrador declara não ter conhecimento de tudo que as personagens pensam e sentem. Isso ocorre no trecho transcrito, quando o narrador afirma ao leitor que “não nos é dado penetrar” (isto é, não podemos ter acesso) no “segredo do coração do rapaz” (quer dizer, ao que o rapaz sente).