Texto 1
A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção, indispensável para sobreviver na vida selvagem. Um animal ocupado no exercício da mastigação de sua comida tem de ocupar-se ao mesmo tempo também com outras atividades. Deve cuidar para que, ao comer, ele próprio não acabe comido. Ao mesmo tempo tem de vigiar sua prole e manter o olho em seu(sua) parceiro(a). O animal não pode mergulhar contemplativamente no que tem diante de si, pois tem de elaborar ao mesmo tempo o que tem atrás de si. Não apenas a multitarefa, mas também atividades como jogos de computador geram uma atenção ampla, mas rasa, que se assemelha à atenção de um animal selvagem.
Byung-Chul Han, Sociedade do cansaço. Adaptado.
Texto 2
Educar para o ócio significa ensinar a escolher um filme, uma peça de teatro, um livro. Ensinar como pode estar bem sozinho, consigo mesmo, significa também se habituar às atividades domésticas e à produção autônoma de muitas coisas que até o momento comprávamos prontas. Ensinar o prazer do convívio, da introspecção, do jogo e da beleza. Inculcar a alegria. A pedagogia do ócio também tem sua própria ética, sua estética, sua dinâmica e suas técnicas. E tudo isso deve ser ensinado. O ócio requer uma escolha atenta dos lugares justos: para se repousar, para se distrair e para se divertir. Portanto, é preciso ensinar aos jovens não só como se virar nos meandros do trabalho, mas também pelos meandros dos vários possíveis lazeres. Significa educar para a solidão e para o convívio, para a solidariedade e o voluntariado. Significa ensinar como evitar a alienação que pode ser provocada pelo tempo livre, tão perigosa quanto a alienação derivada do trabalho. Há muito o que ensinar!
Domenico de Masi. O ócio criativo.
Texto 3
Analisar as diferenças entre a educação escolar indígena e a educação escolar convencional no Brasil foi o ponto de partida do trabalho feito pelos pesquisadores Aline Abbonizio, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e Elie Ghanem, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). “Dois fatos me impressionaram especialmente na comunidade em que pesquisei, além do grande valor atribuído à escola como fator de fortalecimento da língua e da cultura daquele povo, a acentuada integração entre as atividades escolares e as práticas comunitárias. Não há tempos rígidos, não há horários fixos nem se seguem disciplinas escolares. As atividades da escola obedecem a um ritmo sereno e envolvem tarefas de manutenção dos costumes, incluem tanto a roça quanto o artesanato ou a coleta de produtos da mata”, relata Ghanem.
https://www4.fe.usp.br/pesquisa-da-feusp-analisa-diferencas-entre-educacao-indigena-e-convencional.
Adaptado.
Texto 4
Texto 5
Texto 6
Texto 7
Considerando as ideias apresentadas nos textos e também outras informações que julgar pertinentes, redija uma dissertação em prosa, na qual você exponha seu ponto de vista sobre o tema: Educação básica e formação profissional: entre a multitarefa e a reflexão.
Instruções:
• A dissertação deve ser redigida de acordo com a norma padrão da língua portuguesa.
• Escreva, no mínimo, 20 linhas, com letra legível, e não ultrapasse a quantidade de linhas disponíveis na folha de redação.
A proposta de redação da Fuvest 2024 requisitou a elaboração de uma dissertação sobre o tema “Educação básica e formação profissional: entre a multitarefa e a reflexão”. No que tange ao assunto proposto, a banca seguiu a tradição de abordar uma questão relevante para a compreensão de certas dinâmicas sociais do mundo contemporâneo, e o recorte temático, assim como na edição anterior – Fuvest 2023 –, teve um caráter mais social e concreto.
Para a elaboração da redação, era necessário se apropriar das reflexões trazidas pela coletânea, a qual foi composta por textos de diferentes tipos: imagens que reproduziam obras de arte, postagem de redes sociais, além de excertos que tratavam o tema a partir de abordagens filosóficas, sociais e pedagógicas. Dessa forma, o candidato deveria, com base na leitura e análise dos textos motivadores, refletir a respeito de sua própria condição de estudante e futuro profissional.
A proposta contava com sete textos de apoio. O primeiro, de Byung-Chul Han, destaca que a capacidade de realizar multitarefas – técnica de atenção essencial para a sobrevivência de animais na natureza, que precisam realizar diversas atividades simultaneamente para garantir sua segurança e a de sua prole – não é exclusiva da sociedade humana pós-moderna, sendo, na verdade, uma habilidade observada amplamente na vida selvagem. A comparação é feita entre a multitarefa humana, especialmente relacionada a atividades como jogos de computador, e a atenção ampla, mas superficial, observada em animais selvagens. Já o segundo texto, de Domenico de Masi, diz que educar para o ócio envolve ensinar a escolher entre atividades culturais, domésticas e autônomas. Além disso, abrange promover o prazer do convívio, introspecção, jogo e beleza, inculcando alegria. Segundo o autor, a pedagogia do ócio possui ética, estética, dinâmica e técnicas próprias, exigindo o ensino atento de como aproveitar o tempo livre de forma significativa, evitando a alienação. No terceiro excerto, é apresentada uma análise dos pesquisadores Aline Abbonizio, da UFRRJ, e Elie Ghanem, da USP, sobre as diferenças entre a educação escolar indígena e a convencional no Brasil; eles destacaram a valorização da escola como fortalecedora da língua e cultura indígenas, além da integração fluida entre atividades escolares e práticas comunitárias, caracterizadas por ritmo sereno e variedade de tarefas. O texto 4, que exibe uma mulher em um de seus momentos de ócio, corrobora e reforça a ideia trazida no texto 2 sobre a importância de se garantir momentos de ociosidade para além dos estudos formais. O texto 5 – uma obra de arte de Ivan Cruz que retrata uma brincadeira de ciranda realizada entre crianças – provavelmente tem como propósito fazer o candidato refletir sobre a importância de se valorizar as brincadeiras na infância, já que é uma das atividades essenciais para o desenvolvimento adequado da criança. O texto 6,The Banjo Lesson, de Henry Ossawa Tanner, retrata como a arte e a cultura podem expandir o universo da criança. Apenas para citar exemplos, a música tem um caráter interdisciplinar, uma vez que trabalha com subjetividades, linguagens, coordenação motora e conceitos matemáticos, por exemplo. Por fim, o texto 7, uma postagem de rede social da página humanar_se, expõe um infográfico que contrapõe dois tipos de análises sobre o que seria ter sucesso na vida: a primeira concepção se baseia em uma visão mais conservadora e associa o sucesso apenas ao salário e ao cargo que um sujeito ocupa - ou seja, quanto mais alto o valor e mais prestígio houver na profissão exercida, mais sucesso se obtém -; já a segunda análise, mais contemporânea, deixa clara a visão de que ter sucesso é sinônimo, na verdade, de uma vida mais equilibrada - e que, portanto, concilia questões como saúde mental e física, tempo ocioso, salário, satisfação com o emprego etc.
Diante de todo esse conteúdo, fica claro que o tema e os textos de apoio devem ser tomados como pontos de partida para a mobilização de um repertório cultural relacionado ao tema e que contribua para a construção de uma visão crítica a respeito dele. Nesse sentido, entre outros, poderiam ser desenvolvidos os seguintes encaminhamentos:
- Tratar da concepção de educação crítica e emancipatória para discutir a importância da reflexão na educação; essa abordagem se contrapõe a uma educação “bancária”, que trata apenas da transmissão de informações a serem memorizadas. Aqui, poderia ser citado como referência o educador brasileiro Paulo Freire e sua obra "Pedagogia do Oprimido";
- Abordar a concepção de Darcy Ribeiro, antropólogo brasileiro, de que “a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um programa” também contribui com o debate proposto. Isso porque, para o autor, a educação precária no país (sem preocupações ligadas à reflexão) serve à intenção de formar uma massa de mão-de-obra barata, o que impede mudanças sociais;
- As noções de razão crítica e razão instrumental - conceito cunhado por Adorno e Horkheimer - poderiam ser mobilizados na discussão, associados, respectivamente, à reflexão e à multitarefa. De acordo com os autores, a segunda trata apenas do cálculo de meios e visa à dominação da natureza e de seres humanos, enquanto a primeira abrange reflexões sobre os fins, tendo em vista a emancipação humana;
- Abordar o conceito de poder disciplinar, de Michel Foucault, trata, de certa forma, de uma educação mais voltada à preparação para um mercado “multitarefa” do que à reflexão. De acordo com o autor, na escola ocorre uma distribuição de poderes que redunda na formação de “corpos dóceis”, preparados a desempenhar tarefas designadas por outros de forma disciplinada;
- O conceito de “uberização do trabalho” também traria contribuições ao desenvolvimento do tema. Normalmente, essa nomenclatura se refere a recentes modalidades de trabalho ligadas a novas tecnologias, marcadas pela sobrecarga de tarefas e pela precarização de direitos;
- Também seria possível abordar a Reforma do Ensino Médio, visto que as recentes mudanças no ensino médio no Brasil foram, desde sua proposição, alvo de críticas que podem ser associadas ao tema em debate. Entre os problemas, estaria a falta de reflexividade na proposição de temas de cursos para os itinerários e a mudança quanto ao status das disciplinas de sociologia e filosofia, que passaram a ser apenas conteúdos obrigatórios – o que poderia comprometer o estímulo à reflexão na formação escolar dos jovens.
- No livro "Futuro Ancestral" (2023), Ailton Krenak mostra como problemas relacionados ao colapso do mundo neoliberal são frutos de uma civilização, sobretudo, que não tem imaginação. Nesse sentido, a educação indígena rompe a hierarquia de dominação das escolas tradicionais dos brancos, já que os povos tradicionais partem de uma investigação coletiva das necessidades da aldeia, e os conteúdos ensinados às crianças são transmitidos a partir da responsabilidade com o outro. Segundo o autor, "Nós que persistimos em uma experiência coletiva, não educamos crianças para que elas sejam campeãs em alguma coisa, mas para serem companheiras uma das outras" (p.115). Isso ilustra como as comunidades tradicionais se opõem aos princípios neoliberais de exploração, competição e lucro.