A escravidão

Esses meninos que aí andam jogando peteca não viram nunca um escravo... Quando crescerem, saberão que já houve no Brasil uma raça triste, votada à escravidão e ao desespero: e verão nos museus a coleção hedionda dos troncos, dos vira-mundos e dos bacalhaus; e terão notícias dos trágicos horrores de uma época maldita: filhos arrancados ao seio das mães, virgens violadas em pranto, homens assados lentamente em fornos de cal, mulheres nuas recebendo na sua miséria nudez desvalida o duplo ultraje das chicotadas e dos olhares do feitor bestial.

Mas a sua indignação nunca poderá ser tão grande como a daqueles que nasceram e cresceram em pleno horror, no meio desse horrível drama de sangue e lodo, sentindo dentro do ouvido e da alma, numa arrastada e contínua melopeia, o longo gemer da raça mártir — orquestração satânica de todos os soluços, de todas as impressões, de todos os lamentos que a tortura e a injustiça podem arrancar a gargantas humanas.

BILAC, O. Disponível em: www.escritas.org. Acesso em:  29 out. 2021.

Publicado em 1902, o texto de Olavo Bilac enfatiza as mazelas da escravidão no Brasil ao

  • a

    descrever de modo impessoal as consequências da exploração racial sobre as gerações futuras.

  • b

    contrapor a infância privilegiada das crianças da época à infância violentada das crianças escravizadas.

  • c

    antecipar o futuro apagamento das marcas da escravidão no contexto social.

  • d

    criticar a atenuação da violência contra os povos escravizados nas memórias retratadas pelos museus.

  • e

    imaginar a reação de indiferença de seus contemporâneos com os escravizados libertos.

Gabarito oficial: C

Gabarito Anglo: B

Análise do gabarito oficial

Nossa discordância em relação ao gabarito oficial se deve a elementos textuais bastante palpáveis, já que se trata de recursos linguísticos exaustivamente estudados pela tradição gramatical: o uso do artigo e os graus do adjetivo.

Segundo a Banca, o texto de Bilac anteciparia “o futuro apagamento das marcas da escravidão no contexto social” (grifo nosso). Por mais que seja sutil, há diferença entre “apagamento de marcas” (sem uso de artigo) e “apagamento das marcas”.

No primeiro caso, a ausência de artigo faz com que o substantivo “marcas” não assuma um referente específico, sugerindo assim que algumas marcas esparsas desapareceriam – o que seria uma leitura aceitável, embora redutora em relação ao texto e ao que solicita o enunciado do item.

No entanto, tal como está redigida a alternativa dada como correta, o artigo definido atribui ao substantivo uma referência específica e, estando no plural, tal referente seria a totalidade das ditas “marcas da escravidão” – as quais, segundo o gabarito ora apresentado pela Banca, desapareceriam no futuro. Tal interpretação é inadmissível se confrontada com o primeiro parágrafo, que menciona uma certa memória do período, a ser registrada até mesmo em museus.

É também obstante a essa leitura – que, a nosso ver, deve ser revista pelo INEP – o início do segundo parágrafo do texto-base. Tal passagem se inicia por este período, no qual destacamos o grau comparativo do adjetivo: “Mas a sua indignação nunca poderá ser tão grande como a daqueles que nasceram e cresceram em pleno horror (...).” Ainda que se afirme a impossibilidade de a indignação futura atingir a mesma intensidade daquela experimentada pelos que viveram a escravidão, o enunciador assume que haverá sim indignação, porém abrandada. Isso impede o leitor de inferir, com base no fragmento, que o texto de Bilac destaca as mazelas do período escravagista ao “antecipar o futuro apagamento das marcas da escravidão no contexto social”.

Dessa forma, em respeito aos estudantes que participaram do exame, defendemos que o gabarito seja revisto. A seguir, sustentamos a resposta que nos parece mais adequada.

Justificativa do gabarito Anglo

O excerto contrapõe duas infâncias: a dos que eram crianças no momento da enunciação (ou seja, quando o texto foi produzido) e a dos que foram escravizados.

O primeiro grupo é citado no início do excerto: “Esses meninos que aí andam jogando peteca não viram nunca um escravo...”.

No início do segundo parágrafo, estabelece-se a contraposição, demarcada pelo conector adversativo: “Mas sua indignação nunca poderá ser tão grande como a daqueles que nasceram e cresceram em pleno horror”.

Observação: embora seja algo anacrônico o uso do termo “privilegiado” para contrapor crianças livres e sujeitos escravizados, tal deslize nos parece menos grave do que ignorar o valor semântico do artigo definido e elementos explícitos da superfície textual – o que seria necessário para assumir a alternativa C como correta.