Passado muito tempo, resolvi tentar falar, porque estava sozinha me embrenhando na mesma vereda que Donana costumava entrar. Ainda recordo da palavra que escolhi: arado. Me deleitava vendo meu pai conduzindo o arado velho da fazenda carregado pelo boi, rasgando a terra para depois lançar grãos de arroz em torrões marrons e vermelhos revolvidos. Gostava do som redondo, fácil e ruidoso que tinha ao ser enunciado.” “Vou trabalhar no arado.” "Vou arar a terra." "Seria bom ter um arado novo, esse arado tá troncho e velho." O som que deixou minha boca era uma aberração, uma desordem, como se no lugar do pedaço perdido da língua tivesse um ovo quente. Era um arado torto, deformado, que penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil, destruída, dilacerada.

VIEIRA JR., I. Torto arado. São Paulo: Todavia. 2019.

Com a perda de parte da língua na infância, a narradora tenta voltar a falar. Essa tentativa revela uma experiência que

  • a

    reflete o olhar do pai sobre as etapas do plantio.

  • b

    metaforiza a linguagem como ferramenta de lavoura.

  • c

    explicita, na busca pela palavra, o medo da solidão.

  • d

    confirma a frustração da narradora com relação à terra.

  • e

    Sugere, na ausência da linguagem, a estagnação do tempo.

Neste trecho representativo do célebre romance de Itamar Vieira Jr, há uma aproximação entre a língua (por extensão, a linguagem, a produção de sentido com os sons) e o arado (o trabalho com a terra, central na comunidade da personagem). Quando tenta articular os sons da palavra “arado”, a personagem diz que lhe sai “uma aberração, uma desordem” e então se vale de uma metáfora: aquilo “era um arado torto”. O verbo ser estabelece uma semelhança sem uso de comparativo, definição exata de metáfora.