Migalhas

Entre a toalha branca e um bule de café
seria inapropriado dizer
eu não te amo mais.
Era necessário algo mais solene,
um jardim japonês
para as perdas pensadas,
um noturno de tempestade
para arrebentar de dor,
uma praia de pedras para chorar
em silêncio, uma cama alta
para o incenso da despedida,
uma janela
dando para o abismo.
No entanto você abaixa os olhos
e recolhe lentamente as migalhas de pão
sobre a mesa posta para dois.

MARQUES, A. M. A vida submarina. São Paulo. Cia das Letras, 2021.

Nesse poema, a representação do sentimento amoroso recupera a tradição lírica, mas se ajusta á visão contemporânea ao

  • a

    invocar o interlocutor para uma tomada de posição. 

  • b

    questionar a validade do envolvimento romântico. 

  • c

    diluir em banalidade a comoção de um amor frustrado. 

  • d

    transformar em paz as emoções conflituosas do casal. 

  • e

    condicionar a existência da paixão a espaços idealizados.

No poema de Ana Martins Marques, o eu lírico estabelece um contraste. De um lado, haveria os cenários “apropriados” para se comunicar o fim do sentimento amoroso: lugares “solenes”, elevados, de grande dramaticidade, como era comum na tradição lírica, em especial no Romantismo. De outro, há o cenário onde o eu lírico de fato expressa o término da paixão: uma prosaica mesa de café da manhã. O contraponto, assim, alinha-se à visão contemporânea, em que sentimentos solenes se dão em situações comuns, e vice-versa. A banalidade – no caso, sinônimo de “prosaísmo”, “trivialidade” – dilui uma possível grandiloquência da cena, o que já está sugerido desde o título autoirônico: trata-se aqui de “migalhas”.