Enquanto estivemos entretidos com os urubus outras coisas andaram acontecendo na cidade. A Companhia baixou novas proibições, umas inteiramente bobocas, só pelo prazer de proibir (ninguém podia cuspir pra cima, nem carregar água em jacá, nem tapar o sol com peneira, como se todo mundo estivesse abusando dessas esquisitices); mas outras bem irritantes, como a de pular muro pra cortar caminho, tática que quase todo mundo que não sofria de reumatismo vinha adotando ultimamente, principalmente os meninos. E não confiando na proibição só, nem na força dos castigos, que eram rigorosos, a Companhia ainda mandou fincar cacos de garrafa nos muros. Achei isso um exagero, e comentei o assunto com mamãe. Meu pai ouviu lá do quarto e veio explicar. Disse que em épocas normais bastava uma coisa ou outra; mas agora a Companhia não podia admitir nenhuma brecha em suas ordens; se alguém desobedecesse á proibição podia se cortar nos cacos; se alguém conseguisse pular um muro quebrando o corte de alguns cacos, ou jogando um couro por cima, era apanhado pela proibição, nhoc — e fez o gesto de quem torce o pescoço de um frango.
VEIGA, J. J. Sombras de reis barbudos. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1976.
Sob a perspectiva do menino que narra, os fatos ficcionais oferecem um esboço do momento político vigente na década de 1970, aqui representado pelo
A década de 1970 no Brasil foi marcada pelo auge do autoritarismo e da violência do regime ditatorial. Na prosa de José J. Veiga, percebe-se um esboço do momento político na presença difusa de um clima de medo. Isso está presente, por exemplo, nas descrições gráficas que o pai faz ao final do excerto, prolongando a ameaça da Companhia contra quem transgredisse as proibições. O fato de a conversa se dar no ambiente doméstico sugere que as situações cotidianas tampouco se isentam das tensões coletivas – nem em casa, conversando despretensiosamente com sua mãe, o menino está livre de ser assombrado pela misteriosa Companhia, que encarna a opressão.