Texto 1
Meritocracia pode ser compreendida como um sistema de hierarquização e premiação baseado nos méritos pessoais de cada indivíduo. O poder do mérito está assentado na suposição de qualidades individuais, resultado de esforço e dedicação.
(Berenice Bento. “Crítica da crítica à meritocracia”. https://diplomatique.org.br, 27.04.2021. Adaptado.)
Texto 2
Um mês depois da Tomada da Bastilha, em 1789, a Assembleia Nacional da França aprovou um dos textos mais importantes da história do mundo — a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Um trecho consagrava uma ideia nova para a época, uma das bandeiras dos iluministas franceses: as pessoas devem ser julgadas por seu mérito, e não pela raça, sexo ou pela “nobreza do sangue”.
De acordo com o sexto artigo da Declaração, “Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos”.
(Leandro Narloch. “Ideia revolucionária fundou o mundo moderno”. www.folha.uol.com.br, 15.09.2021. Adaptado.)
Texto 3
No livro Capital e ideologia, Thomas Piketty argumenta que a ideia de meritocracia serve para que os “vencedores” do atual sistema econômico justifiquem a desigualdade ― em qualquer escala ― jogando nos “perdedores” a culpa por seu próprio fracasso, como se obter êxito fosse apenas questão de esforço individual.
(“Como o discurso da meritocracia ajuda a ampliar a desigualdade social”. www.intrinseca.com.br, 01.09.2020.)
Texto 4
Atualmente, enxergamos o sucesso não como uma questão de sorte, mas como algo que conquistamos por meio de nosso próprio esforço e luta. Esse é o cerne da ética meritocrática. Ela exalta a liberdade e o merecimento. Esse modo de refletir gera poder. Incentiva as pessoas a pensar em si mesmas como responsáveis por seu destino, não como vítimas de forças além do seu controle. Mas tem também um lado negativo. Quanto mais nos enxergamos como pessoas que vencem pelo próprio esforço, menos provável será que nos preocupemos com o destino de quem é menos afortunado do que nós. Se meu sucesso é resultado de minhas ações, o fracasso deles deve ser culpa deles. Essa lógica faz a meritocracia ser corrosiva para a coletividade e a noção de bem comum.
(Michael J. Sandel. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum?, 2021. Adaptado.)
Texto 5
O bem comum deve ser considerado como uma pluralidade de valores que resultam da relação entre o interesse particular de cada indivíduo com o interesse da sociedade. Em um espaço político, pensar apenas em interesses privados, em detrimento do bem comum, significaria corromper a coisa pública.
(Paula Mendes Lima. “Interesse e bem comum”. In: Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling. Dicionário da república, 2019. Adaptado.)
Com base nos textos apresentados e em seus próprios conhecimentos, escreva um texto dissertativo-argumentativo, empregando a norma-padrão da língua portuguesa, sobre o tema:
É possível conciliar mérito e bem comum?
Seguindo a tendência dos últimos anos, a prova de redação do vestibular da Unifesp requisitou a produção de um texto dissertativo-argumentativo sobre um tema atual e socialmente relevante, que exige capacidade de reflexão dos candidatos. Nesta edição, o texto deveria tratar da seguinte questão: “É possível conciliar mérito e bem comum?”.
O tema seguiu o costume das provas anteriores ao ser apresentado em forma de uma pergunta bilateral, e a quantidade de textos de apoio permaneceu a mesma do ano passado: cinco excertos motivadores, os quais traziam bons subsídios para o desenvolvimento da argumentação. O Texto 1 traz uma breve definição de meritocracia, dada por Berenice Bento, a qual explicita, em linhas gerais, que se trata de um sistema no qual se “premia” o indivíduo que mais se esforça. O Texto 2 apresenta as origens históricas da meritocracia, que data da Revolução Francesa e está presente em um dos documentos mais importantes da história (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão); nele, ressalta-se que, sendo todos os cidadãos iguais, eles devem ser julgados exclusivamente pelos seus méritos. O Texto 3 explicita a crítica que Thomas Piketty faz à ideologia meritocrática, e afirma que, na verdade, trata-se de um discurso para que os “vencedores” justifiquem a desigualdade social. Já o Texto 4 é uma fala de Michael Sandel, o qual fala sobre o perigo da meritocracia: apesar de esta exaltar a liberdade e o merecimento, pode trazer uma percepção equivocada sobre o esforço, como se o sucesso dependesse apenas disso e não de outros fatores que vão além do controle do indivíduo; como consequência, essa lógica faz com que a noção do coletivo seja deixada de lado. Por fim, o Texto 5 foi retirado do livro “Dicionário da República”, e traz, mais explicitamente, a relação de “bem comum” e o conceito de meritocracia, afirmando que este bem comum é o resultado da relação entre interesses individuais e interesses coletivos; essa ideia é exemplificada a partir da política: nesse âmbito, pensar apenas do privado vai contra a lógica de funcionamento do espaço público atual.
Encaminhamentos possíveis
Na constituição do seu posicionamento próprio, o candidato poderia abordar, entre outros, os seguintes argumentos:
Argumentos favoráveis à conciliação de mérito e bem comum:
Para a construção dessa lógica, seria possível se basear, especialmente, no excerto 2, ressaltando a ideia de que, se todos os cidadãos são iguais, possuem as mesmas capacidades de conquistas:
- Em uma empresa, pode ser uma maneira de identificar funcionários que agregam ao seu ambiente de trabalho e contribuem com ideias a ações inovadoras. Dessa forma, cooperam para o coletivo dentro do contexto em que estão inseridos;
- A meritocracia pode ser uma forma de desenvolver os potenciais dos funcionários. Isso, tanto em âmbito público como privado, traz benesses ao coletivo: em uma empresa, faz com que ela se mantenha competitiva no mercado; em âmbito público, faz com que se criem e aprimorem-se políticas públicas que beneficiam a sociedade;
- Temos uma constituição que garante muito mais direitos e pouco se fala em deveres. Isso cria uma sociedade que crê que a lei serve muito mais para salvaguardar os direitos do que estimular o esforço. No entanto, é preciso lembrar que a cidadania se caracteriza, também, pela atuação do sujeito na sociedade, cumprindo com suas obrigações para o bem comum. Dessa forma, estimular a meritocracia também estimula ações do indivíduo que levam a conquistas que beneficiam o coletivo.
Argumentos contra a conciliação de mérito e bem comum:
- A meritocracia é inigualitária porque se baseia em um discurso de que o sucesso é alcançado exclusivamente pelo esforço, trabalho e boa vontade. A consequência, portanto, é que se gera intensa competitividade, o que estimula o individualismo, contrário ao bem comum;
- O fato de a meritocracia ser aplicada em um contexto de desigualdade social, a exemplo do Brasil, já mostra que não é possível essa conciliação entre mérito e bem comum: o salário mais elevado de alguns cargos, por exemplo, não se deve apenas ao esforço individual, mas também ao acesso a melhores oportunidades. Se o resultado desse esforço, fundamentado na desigualdade social, é a manutenção dessa própria desigualdade, não é possível conciliar ambos os fatores;
- Não é possível conciliar mérito e bem comum quando o sucesso do indivíduo depende, também, da valorização do mercado. Em um contexto capitalista, em que algumas profissões são mais valorizadas do que outras, não importa o tanto de esforço que o indivíduo empenha para o alcance de seu sucesso. Ou seja, essa desigualdade de valorização gerada pelo mercado faz com que o bem comum não seja garantido: se há desigualdade, não há bem comum.
Por último, é possível ressaltar que diversos posicionamentos poderiam ser tomados quanto ao tema em questão, e não necessariamente unívocos: era possível, por exemplo, posicionar-se a favor da pergunta, afirmando que é possível conciliar mérito e bem comum em alguns casos, mas não em outros.