Mesmo em seus primeiros livros, quando ainda o cerceavam os cânones românticos e possivelmente o inibia a timidez, o receio de ser diferente dos outros, de enveredar por caminhos até então indevassáveis, já as suas figuras se distinguem pela independência em relação ao meio físico e ao moralismo convencional. Não obedeceu nem ao preconceito, então de rigor, de filiar à natureza tropical o feitio das criaturas, nem ao de fazer personagens exclusivamente boas ou más, tão caro ao romantismo.
Sem preocupação de escola literária desde que se libertou do romantismo, ele observou, como ninguém entre nós, as criaturas em toda a sua realidade, dando a cada aspecto o justo valor, isto é, apreciando a todos com um critério relativo. Foi assim que esse tímido realizou uma audaciosa revolução na nossa literatura ficcionista, até ele subordinada a valores absolutos, que reduziam a simples figurantes as personagens dominadas pela natureza e pela ética convencional.
Dentro, porém, do mundo burguês que descreveu, e que foi, afinal, o seu, não se contentou com as aparências; abismava-se na contemplação das perspectivas inumeráveis da alma humana. Tudo o que o homem da época e da condição de suas criaturas pode pensar, sentir e sonhar, ele o perscrutou. A realidade que via se prolongava na que pressentia, nas reações interiores que acima de tudo o atraíam.
(Lúcia Miguel Pereira. História da
literatura brasileira: prosa de ficção, 1988. Adaptado.)
O texto trata do escritor
A apreciação crítica de Lúcia Miguel Pereira se refere a Machado de Assis. Algumas colocações ali presentes permitem inferir essa indicação. No início, o texto se refere aos “primeiros livros” do autor, ainda marcados pelo seguimento de “cânones românticos”, o que é plenamente verificável nos primeiros romances do escritor. Em seguida, a autora aponta alguns dos aspectos da obra machadiana que ganhariam profundidade na chamada fase realista do escritor: complexidade de caracteres (“independência em relação ao meio físico e ao moralismo convencional”), distância do determinismo naturalista (referido como a tendência a “filiar à natureza tropical o feitio das criaturas”) e dos clichês românticos (evitando “personagens exclusivamente boas ou más”). Nos parágrafos seguintes do texto transcrito, os traços machadianos são salientados de forma ainda mais viva: observação da personalidade humana; relativismo de valores; análise do contraste entre aparência e essência; universalismo, no retrato do humano, e não apenas do nacional. O texto também destaca o papel decisivo do escritor na introdução da estética realista entre nós, trilhando “caminhos até então indevassáveis” e realizando “uma audaciosa revolução na nossa literatura ficcionista” com a publicação das Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1881.