O SOBREVIVENTE

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de [verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.
Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda
falta muito para atingirmos um nível
razoável de cultura. Mas até lá, felizmente,
estarei morto. 

Os homens não melhoraram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heroicos renascem.
Inabitável o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)

Carlos Drummond de Andrade. Alguma Poesia, 1930.

Entre o primeiro e o último verso, há uma aparente contradição, que, todavia, não se sustenta porque

  • a

    os entraves à plenitude lírica são removidos. 

  • b

    os trovadores ainda inspiram os enamorados. 

  • c

    a sabedoria controla o poder das máquinas. 

  • d

    os heróis sempre ressuscitam neste mundo. 

  • e

    a poesia resiste à negatividade do seu tempo.

O texto “O Sobrevivente” faz menção direta ao início da Primeira Guerra Mundial (1914) como um marco da destruição em massa. No primeiro verso, o eu lírico afirma a impossibilidade de se escrever poemas nesse contexto. No último verso, porém, de forma aparentemente contraditória, ele nega a afirmação, porque se dá conta de que acabara de compor um texto poético. Por mais que teoricamente se entendesse como impossível a manutenção da poesia após o advento da guerra, a existência do texto escrito pelo poeta prova que a poesia resiste à negatividade do seu tempo.